Novo dia, novo Lexotan

(João Ubaldo Ribeiro)

Primeira atividade, logo cedinho: sair para comprar o jornal. Mas como, apesar de já serem seis horas, o dia está escuro, melhor esperar que clareie. Sim, o assaltante ataca na claridade também, mas é consolador acreditar que à luz do dia é mais difícil e a lembrança da ocasião em que saíra ainda no escuro e fora assaltado, perdendo relógio e carteira, teve lá seu efeito traumático, embora a prática conduza à perfeição e os seis assaltos que já sofreu lhe tenham dado um certo know-how . Não, não, esperar. Finalmente o astro-rei ilumina o firmamento e ele se dirige à banca de que é freguês.

Chega em casa a salvo, apesar de quase atingido mortalmente por uma bicicleta, pois atravessava uma rua sem sinal, olhando na direção da mão, quando a bicicleta passou zunindo, na contramão. E tomou outro susto, no momento em que, atravessando nova rua, esta com sinal, o motorista do ônibus parado acelerou em ponto-morto, só devido ao espírito folgazão carioca. Calejado, não deu ousadia de demonstrar o susto ao motorista. E, olhando para os lados para ver se não estava sendo seguido, abriu rapidamente o portão do edifício e o bateu, sem esperar que a mola funcionasse, pois às vezes ela não funciona e deixa o portão aberto, um perigo.

O café da manhã já estava na mesa, com a mulher e o casal de filhos adolescentes. Hora das orações para os meninos não serem assaltados no ônibus outra vez. O rapaz era o recordista da casa, com oito ao todo — cinco em ônibus — mas a moça já ameaça um pouco sua liderança, com um total de sete, todos em ônibus. A mulher, essa sortuda, só tinha pegado dois assaltos, ambos perto de casa e sem grandes prejuízos — só os documentos uma vez e uma sacola cheia de compras da outra vez, na hora em que ela parou para dar uma moeda a um pivete e este, sabiamente, preferiu a sacola e não perder tempo também tentando arrancar a bolsa do ombro dela. E o café da manhã até que estava romântico, à luz de velas, em vez das lâmpadas que usavam desde que mandaram instalar a janela de aço reforçado, por causa das duas balas perdidas, que feliz-mente só atingiram uns azulejos, conservados estilhaçados para proporcionar assunto de conversa com as visitas.

Oração feita, passar os olhos pelo jornal, que só leria à noite, no único cômodo da casa onde é mantida acesa uma lâmpada, dessas econômicas, que custou uma fortuna, mas promete ajudar a manter sua quota de racionamento. As duas horas que reservaram para a televisão não eram suficientes para entretê-los. A mulher, como ele também, depois dos jornais, lia livros e os meninos, graças a Deus, tinham uns colegas milionários, que podiam jogar video games com eles uma vez por semana. No mais, se quisessem, procurassem acender uma ou duas velinhas em seus quartos — o que só rendia à mulher o trabalho de verificar, de vez em quando, se eles não estavam incendiando alguma coisa por distração — e fossem ler. Pensando bem, até que o racionamento tem suas vantagens, como incentivar o hábito da leitura, embora à custa de um certo desgaste visual, mas não se pode querer tudo neste mundo.

O jornal. Ladroagem. Bandidagem oficial. Dólar nas alturas. Tudo mais caro, mas o governo garantindo que não há inflação. Deve ser ilusão de ótica, quando se passa pelo caixa do supermercado e se dão cada vez mais notas de dez à moça que faz a cobrança. Assassinatos para todos os gostos. Rebelião em polícias militares. Rebeliões em presídios. Metas de racionamento não atingidas. Seca no Nordeste. Assaltos a delegacias e invasões de hospitais. Suspeitas de meningite no Rio. Israelenses e palestinos se matando com afinco. Não, não leria diabo de jornal nenhum à noite, só aquela passadinha já dava para ver o que o esperava. Aliás, tinha que parar com esse vício de ler jornais, que saem sempre com as mesmas notícias — ou piores. Lembrar de pedir ao médico que freqüenta sua mesa de botequim que lhe dê outra receitinha de Lexotan, porque o dele, com este, já está acabando.

Calma, calma. Agora era só vestir o terno, verificar se não tinha mesmo tirado da carteira todos os cartões, pôr o dinheiro do almoço entre a meia e o pé, deixando algum no bolso para não irritar um possível assaltante e... Ih! É segunda-feira e como, devido ao racionamento, não pudera sacar no caixa eletrônico no domingo, estava sem o numerário necessário para as despesas do dia. Bem, não tinha problema, o caixa agora estava funcionando. Providência elementar, o seu era perto, passaria por lá e pegaria o dinheiro. Passou, mas não entrou. Amontoados à porta do caixa, alguns pivetes de olhares estranhos como que tocaiavam quem entrava ou saía. Bobagem suspeitar de algumas pobres crianças de rua? Preconceito? Dilemas, dilemas.

Felizmente o Gouveia apareceu. Gouveia é muito boa praça e não se recusa a ficar do lado de fora, a uma distância prudente, enquanto ele entra e vai ao caixa. Qualquer problema, o Gouveia chama a polícia, se houver polícia por perto. Sua um pouco frio, porque a senha não lhe vem à cabeça durante alguns angustiantes segundos. Mas ela finalmente aparece. Ele se encosta no teclado, cobrindo a mão que tecla com a outra, porque já leu que há esquemas em que até câmeras de tevê pegam as senhas, depois clonam os cartões e limpam o dinheiro todo. Mas tudo corre bem, uma volta rápida à casa para pôr o dinheiro na meia outra vez, malocar o cartão do banco e sair para o trabalho.

Pelo menos isso, um emprego seguro e relativamente bem remunerado. Mas quem são aqueles estranhos, agora distribuindo questionários e examinando arquivos e organogramas, por todas as salas da firma? Ah, engenharia empresarial, redimensionamento, terceirização. O comentário é que haverá pelo menos cem demissões. Não, no caso dele não, tinha quase 20 anos de casa, era um funcionário exemplar, não podia ser. Ou podia? Benzeu-se discretamente e pegou o segundo Lexotan, que felizmente havia levado. E ficou fantasiando meio bobamente que podia se dar bem, se investisse a indenização e o restinho da poupança no mercado de ansiolíticos.