Meu amigo Evandro

(João Ubaldo Ribeiro)

Não quero, embora talvez não possa evitá-lo, que esta seja uma crônica triste. Meu amigo Evandro Carlos de Andrade, diretor de Jornalismo da Globo e meu ex-diretor de redação, morreu, como sabem todos os que lêem jornal, ou assistem à televisão. Não pode haver nada de alegre nessa morte prematura, que tanto doeu, ainda dói e doerá, entre seus amigos, como eu.

Mas não quero que seja uma crônica melancólica e carpideira, pois nunca foi assim nossa convivência, que agora vejo como foi escassa, levando em conta a afeição que tinha por ele e que ele me retribuía. Lembro, sim, um Evandro severo e disciplinador no trabalho, mas lembro mais as boas risadas que dávamos quando nos encontrávamos. A morte o levou e agora me arrependo de não haver aproveitado todas as chances de ter estado com ele, que desperdicei, a ponto de ele, que, apesar de não aparentar, era tímido, haver desconfiado de que minhas sucessivas negaças a ir passar uns dias com ele em Angra dos Reis eram uma espécie de esnobada, em lugar do meu comodismo, verdadeira razão para as recusas.

Foi ele que me convidou para almoçar, na companhia de nosso amigo comum Henrique Caban, já se vão uns 20 anos, para escrever uma crônica semanal. Eu escrevia para outro jornal e ele me perguntou quanto eu ganhava por esse trabalho. Quando lhe contei, lembro que ele e Caban fizeram força para não rir, mas acabaram soltando umas risadinhas e me ofereceram quatro ou cinco vezes mais. Aceitei maravilhado e, desde esse dia passei a reportar-me diretamente a ele, que prezava muito uma redação correta e chegou a encher minha bola algumas vezes, recomendando por circular aos colegas de redação que lessem minhas crônicas — deixo de lado a modéstia e o exagero a que sua estima por mim o levavam — para verem como se devia escrever.

— Eu tenho direito a minhas crases certas! — dizia ele. — A gente paga e, portanto, a gente tem direito a nossas crases!

E, embora eu nunca tivesse ido com ele a Angra, ele me visitou umas quatro ou cinco vezes, em Itaparica, sempre com o ar retraído de quem não queria incomodar. Eu tinha de fazer força para mostrar-lhe que ele não incomodava coisa nenhuma, antes muito pelo contrário. Uma vez, na companhia de um de seus filhos e de outro amigo, ele pulou o murinho da biblioteca da cidade, onde eu tinha meu escritório, e me acenou pela vidraça. Fiz com que eles entrassem e caí na bobagem de explicar que eu não podia ser interrompido em meu trabalho, porque senão tudo desandava. Queria referir-me a interrupções longas, como, por exemplo, viagens de mais de cinco dias, mas ele ficou vermelho (sempre manteve a capacidade de ruborizar-se, coisa já tão fora de moda, mas que mostra um caráter sensível) e pediu profusas desculpas por me ter interrompido. Não adiantaram minhas explicações. Ele, ainda se desculpando, foi embora e só me encontrou mais tarde, na pracinha da cidade, o Largo da Quitanda.

Foi em Itaparica também que se deflagrou a nossa guerra ortográfico-gramatical, que durou anos. Eu mostrei a ele os originais de O Sorriso do Lagarto, romance que estava então escrevendo e ele, por hábito profissional, começou a lê-lo de caneta em punho. Tinha a aparência ancha e satisfeita de quem lia algo de alta qualidade, o que me deixou vaidoso, porque ele sabia mesmo escrever. Lá pelas tantas, o desastre: ele encontrou a palavra "ascenção" escrita assim mesmo, com cedilha, em vez de "s".

— Ascensão é com "s"! — bradou ele indignado e fazendo a correção imediatamente.

Não me conformei, fui lá dentro, peguei o Aurélio e, claro, ele tinha razão.

Passei anos com esse vexame me remoendo o peito, até o dia em que a doce vingança se ofereceu a mim. Depois de um intervalo sem escrever mais para o jornal, voltei, a convite dele novamente. Minha primeira crônica, que ele publicou sem questionar, era uma diatribe qualquer, longa demais, sobre a situação política nacional. Mas ele resolveu me fazer um bilhete, em que perguntava se eu não estava achando aquele caminho "sizudo" demais. Havia chegado a minha hora.

— Sisudo é com "s" — disse eu, procurando não trair minha sensação de honra lavada.

Igualzinho ao que tinha acontecido em Itaparica, ele ficou devidamente vermelho e foi pegar o Aurélio que lhe estava sempre à mão. E eu, claro, dessa vez tinha razão. Ficamos nesse um-a-um durante anos, até que um dia escrevi uma crônica entupida de solecismos grotescos e ele, já na tevê, não se conteve e me tascou dois e-mails afetuosamente gozadores. Devemos ter ficado nuns quatro-a-um, mais ou menos, até porque eu nunca mais vi um texto dele, já que sua função não era escrever, mas liderar e inovar com a competência e a dedicação de sempre. Além disso, como ele não costumava errar, seria difícil virar essa goleada.

Agora ele se foi, tenho imensa saudade. De vez em quando me pergunto se ele terá morrido mesmo, se tudo não foi um pesadelo, se de fato não nos encontraremos mais em restaurantes (num dos quais, não em minha companhia, foi a última vez em que o vi) ou numa reunião em casa de amigos. Não, não nos vamos mais encontrar, pelo menos tão cedo. E não quero terminar solenemente, referindo-me a homem tão marcante na história do nosso jornalismo, ao profissional e companheiro exemplar, àquele que todos os que conhecem sua trajetória sabem. Quero me lembrar de seu riso franco e aberto, de sua conversa elegantemente erudita, de seu senso de humor e ironia, de suas afinidades comigo. Quero me lembrar de meu amigo Evandro Carlos de Andrade como ele permanece, perenizado em meu coração.