Investigando o biscoito

(João Ubaldo Ribeiro)

Raia a rododáctila (ou seja, de dedos cor-de-rosa mesmo; só estou me exibindo um bocadinho) Aurora e o valente escritor se dirige à banca de jornais, onde adquirirá os periódicos com que necessita nutrir-se da chamada realidade, a fim de poder continuar produzindo estas modestas linhas dominicais. Ainda escuro, já estava acordado e a banca aberta, mas a lembrança da tentativa de assalto (já contei aqui: quiseram me pegar, eu berrei “Severino” e todos os porteiros de prédios da rua saíram para me acudir; sei que pensam que é chiste, mas é a pura verdade) fez com que ele esperasse o sol — eis que, afinal, é valente, mas não é o Rambo.

Podia assinar os jornais, mas prefere viver perigosamente. Como dizem todos os que se dependuram de um fio de náilon nas cataratas do Niágara e cometem semelhantes atos esportivos ora em voga, nada como o pique de adrenalina, ao desafiarem-se mais uma vez os graves riscos dessa saída. O bom de ser escritor hoje em dia é que a gente não precisa mais matar leões ou pescar marlins de oitocentos quilos, basta viver numa cidade grande daqui mesmo. Pode ser mais perigoso, mas é mais barato e, além de tudo, estranhamente, não tenho vontade de matar nada. E, embora já dia claro, desço à rua conforme manda a experiência e instrui a prudência. O dinheiro dos jornais está contado, nada de carteira, somente o relógio japonês legítimo no pulso, para entregar ao assaltante.

Mas tudo transcorre sem anormalidades e aqui estão os jornais. Rezo um Pai-Nosso e uma Ave-Maria antes de iniciar os trabalhos, para pedir que minha burrice não se alce a níveis embaraçosamente elevados e que eu continue a sobreviver, ainda que abalado, à leitura dos jornais. Inicio com os tremores habituais, mas, depois de ler durante uns dez minutos, começa a invadir-me uma certa paz inusitada, ou uma luz no fundo do túnel, como se dizia antigamente, antes de se descobrir que não há nem túnel, quanto mais luz. Bem, um certo sentimento de tranqüilidade, na falta de melhor descrição, uma placidez quase nirvânica. Como ando meio filosófico ultimamente, ao ponto que me permite a ignorância, acho que, depois do falcatruísmo como filosofia da História, lançarei o budismo sociopolítico como política de ação ou, melhor dizendo, inação.

O budismo sociopolítico praticará postura semelhante ao budismo de verdade. Não desejar nada, almeja o budista espiritual. Não esperar nada, recomenda o budismo sociopolítico, não esperar absolutamente nada. Nosso mal tem sido esperar, tanto no sentido de aguardar quanto no de abrigar esperança, estupidez completa. Não devemos esperar nada e, assim, seremos finalmente felizes, estaremos sempre no lucro. É o que a providência, graças à qual ainda estamos vivos e, espantosamente, ainda vamos tocando o barco, nos tem tentado mostrar através de séculos. Está na hora de mudar de postura e ir compreendendo o que parece ser a nossa vocação para a Terceira Divisão. E não há que nos melindrarmos, uma boa Terceira Divisão tem o seu lugar. Já pensaram se o mundo todo fosse desenvolvido, que chatice? É contra as leis da natureza e, na semana que passou, quando transcorreu nosso aniversário, devíamos lembrar isso, é o nosso quinhão, a parte que nos cabe. A julgar pela crítica nacional, não temos realmente nada que preste: não temos escritores, não temos pintores, não temos cineastas, não temos atores, não temos nem o que jogar fora, enfim. E a crítica, como sempre tem razão; razão não tem é o criticado, por não se recolher à sua insignificância.

Aí vemos os jornais e pensamos como é interessante que tenhamos lido há anos e anos artigos em jornais falando na crise de energia a agora fomos surpreendidos por ela. O próprio Homem mandou um despacho de sua nativa Suécia, dizendo que estava por fora, embora depois tenha afirmado o contrário, porque o despacho ele escreveu e o que ele escreveu não deve ser lembrado. Só o que ele diz mesmo e olhe lá. Preocupamo-nos, ainda, com a conferência de Durban e ficamos concentrados na retirada dos Estados Unidos e de Israel, orgulhosos de nossa posição progressista. Na verdade, o que nos interessa está realmente acontecendo por lá, mas é que nós nunca prestamos atenção ao que nos interessa e vivemos acatando pressurosamente o que qualquer gringo diz que nos interessa, do FMI para baixo.

Vocês viram o movimento para que os nativos de certos continentes sejam considerados povos? Por que essa preocupação? Que diferença real faz para um navajo ou apache ser considerado parte de um povo? Nos Estados Unidos, nenhuma. Aqui, sim. Já falei nisso várias vezes, me consideram maluco, me telefonam da redação pedindo que eu tome minha temperatura. Daqui a pouco, sem que ninguém tenha percebido, muito menos o Homem, que, aliás, não está ligando muito, o povo ianomâmi e quantos outros interessarem à “comunidade internacional”, ou seja, os Estados Unidos, terão direito à autodeterminação. Certo, posso até estar com febre, mas na minha opinião a Amazônia vem sendo tomada velozmente, pavimentando a estrada para mais intervenções. E, claro, com missionários, assistência médica, investimentos americanos, saúde americana e tecnologia americana, os ianomâmis vão escolher a “autodeterminação”, ou seja, a condição de um feliz protetorado americano, o que, aliás, é o sonho de muitos de nós também.

É isso. Já que isto daqui não dá certo mesmo, então relaxemos, dentro do etéreo e inefável budismo sociopolítico. Não esperemos nada. Vamos deixar que Alcântara se transforme na nossa Guantánamo, vamos dar o monopólio dos nossos sistemas informáticos ao Bill Gates, vamos entregando logo tudo, relaxemos, relaxemos, é assim mesmo, seremos felizes, se nos livrarmos dessas frustrações inúteis e estéreis. Além disso, há muito com que nos divertirmos. Pensem, por exemplo, que o governo anunciou na semana passada um combate sem tréguas contra as indústrias de biscoito que estejam prejudicando o nosso biscoito. Deverá ser um barato acompanhar essa guerra cívica tão fundamental, pensem só nas primeiras liminares e na criação da Agência Nacional do Biscoito.