A nova vida num boteco do Leblon

(João Ubaldo Ribeiro)

— Tu já parou pra pensar em como é que vai ficar a vida, depois desse negócio lá em Nova York? Nunca mais nada vai ser igual a antes, estamos num mundo novo.

— Ah, não sei, não. Acho que estão exagerando com essa conversa toda. Isso é só no começo, depois tudo vai voltando ao normal.

— Ah, tu não conhece americano. Tu conhece americano?

— Conheço assim, como todo mundo. Conheço de filmes, de leitura, já estive duas vezes em Miami...

— Então não conhece nada. Tu não saca nada de americano. Pra conhecer Miami, não precisa nem ir nos Estados Unidos, basta dar uma volta pela Barra da Tijuca mesmo.

— Não, também não é assim.

— É praticamente a mesma coisa, sem os cubanos. Tu não saca americano. Americano, pra começar, não tem essas veadagens daqui. Lá, o camarada encara a polícia e neguinho enche ele de chumbo na hora, não quer saber. Ou senão manda um tiro à distância na testa do vagabundo. E, se pegar vivo, torra na cadeira elétrica, é por isso que eles estão onde estão e nós onde estamos.

— Que besteira, cara, a polícia aqui no Brasil mata muito mais.

— Extra-oficialmente! Na esculhambação! Lá não, lá é organizado e a Justiça não se mete, quando o caso de fato é do interesse público.

— Mais besteira, claro que se mete. A Justiça americana presume inocência até que o sujeito seja condenado.

— Prá suas nêgas! Pros otários! Quando o caso é importante mesmo, não tem essa. Onde é que tu tá com a cabeça, cara, tu não vê o jornal, não, tu não assiste televisão? Que é que eles botaram na rua?

— Botaram na rua, como? Polícia, Guarda Nacional, bombeiros...

— Não, nada disso. Que é que eles botaram logo na rua, com o cara que eles cismaram — e, quando americano cisma, cisma mesmo, não é como esta babaquice daqui — que foi o autor do atentado? Que é que eles fizeram?

— Sei lá, prenderam uns suspeitos, falaram com o Paquistão pra se entender com o Afeganistão...

— Não, não, você não está alcançando meu raciocínio, eu estou pensando na mentalidade, eu quero demonstrar a você a mentalidade que fez deles o povo que eles são, você não vai negar que o americano é um grande povo.

— Não, não nego, quem parece que está negando é você.

— Eu não, eu tou dando apoio, você não está compreendendo. Que é que eles botaram na rua?

— Sei lá, não estou entendendo mesmo aonde você quer chegar.

— Onde eu quero chegar é simples. O presidente Bush, que pode ter cara de burro, mas é macho, falou logo: é como no velho oeste, procura-se vivo ou morto. Aliás, morto ou vivo, eles lá não têm essas frescuras daqui, eles botam “morto ou vivo” e não “vivo ou morto”, como a gente diz. Melhor logo morto, pra não dar muita despesa, eles são um povo prático, por isso é que estão onde estão e nós estamos onde estamos. Sem frescura, sem frescura. O presidente falou isso e aí pegaram o boneco do cara, do árabe lá, mandaram ampliar e botar em tudo quanto é parede: “Procura-se, morto ou vivo.”

— Não, senhor, não é nada disso.

— Como não é nada disso, eu sei inglês, vi em todos os jornais: “WANTED” — pronuncia-se “uântedi” — “uântedi, dédi or aláivi”, que é que tu quer mais?

— Sim, mas não é bem uma posição oficial, é outra coisa.

— Outra coisa pros otários. Essa é a posição deles. Então você acha que, se eu chegasse na América levando esse árabe cheio de azeitona pelo corpo todo, os americanos iam me prender? Uôntedi, dédi or aláivi, eu trouxe logo dédi, taqui o homem, eu queria ver o Bush não pedir pra posar junto comigo. Americano não tem essas frescuras, não, cara, é por isso que eles estão onde estão e nós estamos onde estamos. Eles iam era me dar um milhão de dólares, fazer uma plástica em mim, mudar meu nome e me botar numa casa fantástica, cheio de mulher. Americano não tem frescura.

— Você está completamente enganado, não ia acontecer nada disso, você ia ser preso e julgado.

— Santíssima inocência! Nesse ponto, os americanos são uma parada dura para os xiitas, que também não têm frescura. Não viu o que eles fizeram com aquele escritor Salmão Ruço, como é lá o nome dele, aquele hindu metido a inglês que falou mal deles? A mesma coisa que o americano com esse árabe, só que sem essa besteira de aláivi, era logo dédi. Ali os dois lados são jogo duro. É com eles que a gente tem de aprender. Estamos num mundo novo!

— Não sei, não, ainda discordo.

— Completamente novo! Não vai ter conversa com insegurança! Nem aviãozinho agrícola o americano vai deixar mais voar perto das cidades, tu não viu? É isso mesmo, tem de engrossar. É por isso que eles estão onde estão e nós estamos onde estamos. Mas nós vamos aprendendo. Tu viu a visita do Fernando Henrique àquela cidade mais pobre do Brasil, Tapera não sei das quantas, lá em Maceió?

— Em Alagoas.

— Pois é, lá no Nordeste; é tudo a mesma coisa. Tu viu a segurança dele?

— Não, não soube nada.

— Seiscentos e dez homens, sacou? Seiscentos e dez! No Rio de Janeiro ou em São Paulo, tinha que ser pelo menos uns seis ou dez mil, como dizem que é na América. Nada desse negócio de ser vaiado, receber ovo na cara, essas coisas. Vai devagar, mas nós aprendemos com os americanos, tem mais é que baixar o pau nessas corjas, tanto lá como aqui!