O gavião Herculano e outras novidades

(João Ubaldo Ribeiro)

Resolvido: hoje não falo mais nos terroristas e nos americanos, que, como sempre, pelo bem de nós todos, vão bombardear montanhas e cavernas no facinoroso Afeganistão. Pode ser até que o mundo esteja começando a ir para a cucuia e, em breve, os poucos que aqui sobrarem estarão morando nos matos, mais ou menos da mesma forma que nossos primos chimpanzés, comendo suculentas lagartinhas e, assim que conseguirmos usar um cabo de vassoura remanescente para fabricar a primeira lança, haverá a primeira guerra pós-pós-moderna e, com o correr do tempo, os primeiros assaltos e pilhagens — nós não temos jeito mesmo.

Mas a velocidade com que as coisas acontecem e a superabundância de informação/desinformação fazem com que tudo se torne velho depois de uma semana. Ninguém quer saber de velhidades e, quando, por exemplo, denuncia-se um escândalo, os noticiários acabam cansando e procurando novidades. É assim com qualquer acontecimento. Consigo prever o dia em que os jornais de tevê noticiarão que morreram 100 mil pessoas na Ásia, entre mais um aviso de aumento da gasolina (o preço do petróleo baixou vertiginosamente e, por conseguinte, a gasolina aqui vai ficar mais cara; aqui é sempre assim: por exemplo, o dólar despenca em toda parte e aqui vai para a estratosfera — nós somos originais) e uma pequena reportagem sobre um tamanduá do interior do Maranhão chamado Ribamar, que usa seu focinho para beber caipirinha e sair meladão, dando abraços de tamanduá em quem aparecer.

Hoje, certamente, os jornais ainda estão cheios de notícias e comentários sobre o assunto, de maneira que acredito que alguns, ou muitos, dos gentis leitores e encantadoras leitoras, ficarão gratos por encontrar um pedacinho de jornal que trate de alguma amenidade. Ninguém agüenta ficar sabendo o tempo todo sobre armas tremebundas, gases capazes de exterminar a população chinesa cabendo dentro de uma garrafa de cerveja e bactérias que causarão espinhela caída terminal em praticamente todo mundo. Não, hoje tomo a liberdade de informar-lhes das novidades em meu terraço, que são muitas, desde a última vez em que falei nele.

Enfrentamos um período de séria decadência e cheguei a pensar em juntar-me ao MST e invadir alguns terraços improdutivos, aqui pelas redondezas. Até a grade de metal que cercava a área estava ficando podre de ferrugem, ameaçando despencar cá de cima a qualquer momento. As trepadeiras não mais trepavam, o pé de romã teve o mesmo destino do da fruta-do-conde e da pitangueira, vítimas de descaso e negligência e hoje defuntas, a passarinhada resumia-se a umas rolinhas pouco sociáveis e, suspeito eu, bastante burras, e assim por diante. Era um quadro desolador e — por que não reconhecer? — vergonhoso. Até a família de bem-te-vis que mora aqui perto, numa castanheira cerrada, nunca mais tinha aparecido.

Caímos na, com perdão da má palavra, real. Decidimos pôr um cobro naquele deplorável estado de coisas e hoje posso dizer com orgulho que o espaço cultural do terraço volta a seus dias de glória. As abelhas e mamangavas, que não se davam mais conosco, voltaram a freqüentar-nos e algumas delas às vezes me galanteiam, adejando em torno de minha cabeça, ou seja, me chamando delicadamente de flor. As trepadeiras trepam adoidado, os hibiscos andam escandalosíssimos, os girassóis impressionariam Van Gogh, as violetas continuam o seu florir recatado e até um coqueiro cresce com extraordinária desenvoltura, me trazendo sonhos de abandonar essa vida airada de artista e me estabelecer num quiosque da orla, vendendo uns coquinhos com selo de garantia da Bahia. Temos também vasta coleção de borboletas variadas e outros bichos polinizadores, bem como beija-flores naturebas, que só aceitam néctar de flor legítimo e rejeitam aquela garapa que se bota em frascos de plástico.

Felipão (não confundir, por favor), o bem-te-vi maior, cessou as hostilidades e, com o que devo admitir ser um certo cinismo interesseiro, se empoleira na nova cerca, à procura das uvas verdes que estranhamente parecem seu lanche favorito e que voltei a deixar para ele. De vez em quando ele traz um amigo ou familiar. Os sanhaços e sabiás vêm exercitar canto lírico na mesma cerca e, finalmente — bomba, bomba! — temos agora um gavião, que do mesmo jeito que em relação ao Felipão, chamamos de Herculano porque, assim como o Felipão tem cara de Felipão, Herculano tem cara de Herculano, todo mundo concorda. Há apenas umas vozes divergentes, que acham que Herculano é na verdade Herculana, uma dona de casa de endereço novo e preocupadíssima com a alimentação da prole.

No começo, Herculano provocou uma certa apreensão, pois, como se sabe, gavião gosta de comer carne e supostamente espantaria os outros freqüentadores de penas. Além disso, por bastante parrudinho, lembra a águia americana, a ponto de, no começo, ele com certeza me achar parecido com árabe, porque dava uns vôos para cima de mim que não pareciam muito amistosos. Fiquei com medo de que, mais dia menos dia, ele soltasse uma bombinha aqui em casa. Mas nada disso. Hoje em dia ele já está convencido de que não somos árabes e tudo indica que é um imigrante interno mesmo, gavião nacional, talvez até um companheiro nordestino. Nós nos damos sem maiores intimidades, mas com cortesia, principalmente quando ele passa um tempão na cerca. Hoje sei que a corrente feminista deve ter razão, porque ele é uma dama de pessoa, apesar de uma certa semelhança fisionômica com o dr. Jader Barbalho, mas quem vê cara não vê conta no banco.

Pronto, eu sabia que vocês não agüentavam mais ficar sem notícias aqui do terraço e me apressei em atendê-los. Limitações de espaço e tempo me impedem de convidá-los para uma turnê pública (mediante uma pequena contraprestação pecuniária, eis que os tempos andam bicudos e vida de escritor não é moleza, como todo mundo acha). E agora peguemos o resto do jornal, para ver quantos homens, mulheres e crianças foram mortas nos últimos dias, por esta nossa civilizadíssima e adiantadíssima espécie de antropóide governada por orangotangos.