Mundo louco

(João Ubaldo Ribeiro)

Minhas senhoras e meus senhores, se era verdade, como dizia meu amigo finado Luiz Cuiúba, que eu tenho um problema na idéia, mais verdade é que esse problema parece aumentar velozmente e devo confessar que, nos últimos dias, venho delirando bastante. O clima é propício ao delírio, notadamente para nós, os que têm problemas na idéia. A realidade é cruel.

Admito que estou muito longe de ser um sábio ou um erudito, mas, assim mesmo, achava que conseguia pensar ordenadamente, ao menos de vez em quando, e agora não sei o que pensar. Aliás, é bem capaz de eu não saber mais pensar, ponto final.

Como direi? Fico sentado abestalhadamente diante da tevê, para tomar conhecimento do que está acontecendo e minha mente tresvaria — tome delírio.

Mataram um casal chinês de tanto surrá-lo e nos informam que deve tratar-se de obra da máfia chinesa de São Paulo, que, juntamente com a do Paraná, é das mais poderosas e malvadas de que se tem notícia. Máfia chinesa em São Paulo. Será que tudo em torno, com a nossa participação inconsciente ou indireta, é um conjunto de máfias e que não podemos mais esperar tranqüilidade neste mundo? Máfia chinesa, máfia de tudo quanto é tipo, todas mandando nas nossas vidas sem que possamos fazer nada ou mesmo perceber o que se passa.

De Itaparica, chegam também notícias pelo telefone. No meu tempo de rapaz, a gente dormia de janela aberta. Faz muito que essa moleza acabou, mas, mesmo assim, ainda se tinha tranqüilidade na ilha. Agora, não. Agora me contam que há assaltos, tiros, invasões de casas por bandidos, todos esses mimos com que se alimentam nossa paranóia, nosso medo e nosso estresse. Agora, as cidadezinhas já não são tão diferentes assim das cidades grandes, vive-se atemorizado tanto numas quanto noutras. Máfia chinesa em São Paulo. Assaltos em Itaparica. Um momentinho, a moça do telejornal agora vai mostrar como o uso de cartões de crédito e mesmo de cheques é um ato muito temerário, nos dias que correm. Se facilitarmos, poderemos ficar duros da noite para o dia e ainda com o nome sujo na praça.

Bom, vamos às notícias internacionais. Discute-se a aquisição de máscaras contra gases e agentes infecciosos. Os mais zelosos querem legislação que obrigue todos a terem tais máscaras em casa, que também deverão existir nas escolas e lugares públicos em geral, inclusive para os animais de estimação (como seria a máscara de uma tartaruga?). Um senhor grave discorre de forma pasmosamente tranqüila sobre as doenças medonhas que poderão eclodir em epidemias, se um celerado, por exemplo, contaminar o sistema de condicionamento de ar num shopping ou num metrô. O certo mesmo, 100% seguro, é ter sempre à mão não somente as máscaras, mas trajes protetores especiais.

A indústria já passa a atender agilmente aos anseios da sociedade e em breve haverá máscaras e adereços complementares de grife. Máfia chinesa em São Paulo, roubos, assaltos, golpes, invasões de casas em Itaparica, todo mundo estuporado de varíola e antraz. Delírios.

Mas esperem, eis que chega a matéria mostrando um cidadão indignado, que quer manter fechado o aeroporto internacional de Washington por questões de segurança. Não deixa de ter razão, porque de repente um maluco vem de lá e enfia um jatão na Galeria Nacional de Arte, para extirpar um dos maiores acervos da ímpia e dissoluta arte ocidental. Ou então no Capitólio mesmo, até porque já ouvi veicularem a suspeita de que um dos três aviões seqüestrados se dirigia à Casa Branca. Para não falar na possibilidade de jogarem dinamite no colo de Lincoln ou explodirem um caminhão-bomba junto ao obelisco de Washington. Não, não. São delírios.

Como são delírios? Do cidadão que fremia diante do aeroporto Dulles, passa-se agora a mostrar a prisão de vários suspeitos de estarem querendo implodir o edifício mais alto dos Estados Unidos, a Sears Tower, em Chicago.

Já prenderam uma porção de gente e aposto que o pessoal que trabalha em escritórios nesse edifício deu para rezar bastante ultimamente. Não só rezar, mas aprovar qualquer medida de segurança, inclusive revista completa à entrada, raios-X do salto do sapato aos óculos (que, por sinal, pode ser feito de um plástico especial, que explode mortalmente, se lhe for aplicado o detonador correto), tevê no banheiro e assim por diante.

Mas isso talvez não preocupe tanto a longo prazo como as conseqüências do que vem ocorrendo. Só o desastre de 11 de setembro, em Nova York, diz aqui um homem do Banco Mundial, vai criar mais dez milhões de miseráveis, dos quais, nós, brasileiros, podemos esperar um quinhão à altura de nossas tradições nesse setor. O citado aeroporto de Washington gera dezenas ou centenas de milhares de empregos, diretos e indiretos. Todo mundo está demitindo todo mundo e não foi estimulante a visão dos funcionários da Embraer postos no olho da rua, assim como prevêem que será o destino de muitos outros.

Tudo indica que a tendência vai ser trocar a liberdade e a privacidade por segurança. Eu mesmo, portador de reputada paranóia, não ando assim com muita vontade de viajar, mesmo numa boca-livre qualquer. Entrar num avião nunca mais vai ser a mesma coisa e, para complicar minha situação, tenho a cara errada em qualquer parte, menos possivelmente aqui pelo Leblon e lá em Itaparica. Na França, tenho cara de árabe e, ainda por cima, falo francês mal, o que, para os franceses, é evidência clara de um cérebro deficiente e de tendências lombrosianas. Nos Estados Unidos, não só eu já tinha cara de hispano (chicano, porto-riquenho, caribenho, é tudo a mesma coisa), como agora também tenho cara de árabe ou indonésio. Na Alemanha, tenho cara de turco. Isso tudo, combinado com a aparência andrajosa que assumo mesmo vestindo um bom terno, torna muito tensa qualquer viagem. E claro que não estou sozinho, pois agora, até antes de entrar num bar de aeroporto, já se pergunta se é freqüentado por muitos americanos — sabe como é, melhor não estar lá, na hora em que o Comando de Defesa da Autodeterminação da Baixa-Eslobóvia mandar para lá um esquadrão suicida, a fim de metralhar todo mundo. Delírios? Viajem vocês, eu fico em casa mesmo, pelo menos enquanto deixarem. E é difícil eu abrir a porta.