Desculpem, desculpem

(João Ubaldo Ribeiro)

Sim, desculpem, desculpem. Asseguro a vocês que não queria falar mais neste assunto, queria falar das coisas boas que Deus, Alá ou Javé nos deu, queria provocar pelo menos uma risadinha cúmplice em algum leitor desconhecido, mas amigo. Moro no Rio de Janeiro, cidade de todos nós, brasileiros, cidade de todos nós, seres humanos, e posso caminhar umas duas centenas de metros para pensar com humildade na paisagem esplêndida que Ele nos dadivou, na comida que existe para todos, mas somente alguns de nós temos, quando todos poderiam ter, na casa que nós temos, mas a maior parte não tem, nos momentos felizes que vivemos embora outros não os conheçam — tudo por nossa própria culpa. Nós, seres humanos, somos o câncer da Terra.

Hoje, para os que têm fé católica, é o Dia da Infância Santa, o dia em que se lembra a ignorada juventude do Cristo. Um dia, afinal, importante para qualquer fé, inclusive o islamismo. Quem não leu o Alcorão não sabe quanto temos em comum com os muçulmanos e quem não leu o Velho Testamento não sabe quanto temos em comum com os judeus. E quem não sabe é inconsciente, irresponsável, alienado, marginalizado ou tristemente doente e não pensa em nada disso.

Hoje é o Dia da Infância Santa. E é também, porque, para tantos de nós, a Santíssima Trindade abrange o Filho que nos veio em forma humana, assim como Javé falou ao homem entre as sarças ardentes ou na teofania do livro de Jó e ditou a Maomé o texto sagrado do Alcorão, o dia de todas as crianças a que minha geração está legando a possibilidade de nenhum futuro, além da hecatombe que pode acontecer a qualquer momento e de que apenas Ele, qualquer que seja o nome que Lhe dermos, pode salvar-nos, inclusive os ateus, pois, mesmo que não queiram, são filhos amados de Deus, Alá ou Javé.

Somos? Entendamos algumas coisas, se possível.

Tenho uma filha, minha mais nova, de 18 anos, uma menina que, pelo menos através dos olhos dos pais, é uma jovem sensível, delicada e solidária, cuja inocência, misturada com a descoberta da vida adulta, às vezes nos traz lágrimas comovidas. Minha filha e as filhas e filhos de vocês, conforme todo mundo me diz na rua ou no boteco, deram para buscar os jornais assim que chegam da escola, os rostinhos pelos quais, por mais cínicos que sejamos, não podemos negar que são nossa responsabilidade, dolorosamente enrugados, vendo como a hora deles talvez não chegue, encarando com medo e apreensão um futuro que eles não merecem e, quer admitamos ou não, foi construído por nós.

E, assim, me lembro, em meio à névoa translúcida e simultaneamente opaca do passado, faz uns 30 anos, de quando morei em Iowa, no meio dos Estados Unidos da América, como participante de um programa para escritores de todo o mundo e onde sempre fui tratado com generosidade e acolhimento e onde deixei tantos amigos, principalmente entre os estudantes. Por acaso me recordo dos nomes de quase todos os que ficaram meus amigos, desde o brilhante John Cipolla, que hoje há de estar recompensado pelo seu talento e dedicação como merece, ao exuberante Dick Fessenmeyer, a quem também desejo, nunca mais os tendo visto, felicidade, como desejo aos outros, que, se citasse, teria de transcrever a lista telefônica de Iowa City. Lá morei, em frente a um lago que no inverno se congelava, nós brincávamos de jogar bolas de neve uns nos outros e eu ia, reverentemente, partilhar da intimidade dos pescadores solitários, que, em suas tendinhas, com chá quente (ou uísque bourbon, que ninguém é de ferro) à mão, abriam um buraco no gelo e esperavam os peixes, cachimbando e pensando na vida com simplicidade.

Iowa é considerado, pelos americanos, um Estado caipira, onde moram lourinhos de fala meio mole e só se pensa em milho, trigo e porco. É um pouco encantadoramente assim, mas também é um centro de excelência em áreas que surpreendem até mesmo os americanos. O dr. Van Allen, o que primeiro estudou o cinto de radiação que rodeia nosso planeta e leva seu nome, ensinava lá. E havia, como já lhes direi, muito mais do que suspeitava nossa vida de cidadezinha universitária em que praticamente todo mundo se conhecia e se unia nas horas em que a solidariedade era necessária. Lá nesse Estado foi criada — desculpem outra vez a rudeza com que falo — a cepa virulenta e mortal da bactéria do antraz, doença praticamente eliminada do mundo, por causa da qual, há tanto tempo, Pasteur viveu um dos seus maiores triunfos, criando a vacina que até hoje era aplicada somente a ruminantes, pois entre os humanos as cepas existentes dificilmente se espalhariam. Agora só há vacinas disponíveis para os militares americanos (e o presidente Bush é constitucionalmente o comandante das Forças Armadas e, portanto, devidamente vacinado), não existem exames confiáveis para o diagnóstico e não há antibióticos específicos em quantidade suficiente.

Era ali, na paz bucólica das pradarias, nos lares gasalhosos que me convidavam somente por hospitalidade, nas lojinhas onde eu até comprava fiado como nos botecos do Leblon, naquele Estado docemente caipira, que se fabricava a morte engarrafada que hoje ameaça todos nós. Os inconscientes de sempre acham engraçado mandar leite em pó, sal de cozinha ou sabão granulado dentro de um envelope, para alguém abrir e pensar que foi contaminado por antraz. Só que agora estão distribuindo, entre essas cartas abomináveis, também a cepa da bactéria criada pelos americanos. O medo e a paranóia dominam tudo e, como já disse aqui, vai sobrar para nós e para todo o mundo, se este sobreviver. Se nós sobrevivermos. Quem deu os esporos de antraz aos terroristas, se os povos subdesenvolvidos não têm condições tecnológicas e financeiras para produzi-los e se o próprio governo americano praticamente reconheceu que se trata da cepa que eles mesmos criaram? Alguém, não necessariamente um terrorista, pode ter vendido esses esporos a uma máfia qualquer. Um milhãozinho de dólar, ou bastante mais, deploravelmente significa a felicidade para os muitos inconscientes que na nossa espécie abundam. Não sei quanto a vocês, mas este sessentão que lhes fala anda perdendo a coragem de encarar um jovem, seja lá de onde ele for, pois somos todos homens e mulheres, somos todos seres humanos e é essa assombração que estamos legando aos nossos descendentes. Desculpem, desculpem. Espero que este domingo seja de sol e que o esplendor da natureza nos enfeitice pelo menos mais um dia.