Saudades do coronel

(João Ubaldo Ribeiro)

Com quase toda a certeza, exceto se você for itaparicano e mais ou menos do meu tope etário, você não sabe o que é fofa. Não adianta ir ao dicionário. Não tenho o Houaiss, de maneira que não posso estar absolutamente seguro, mas tenho o Aurélio instaladinho aqui e ele raramente me falha. Dei uma clicada e fui lá espiar. A palavra "fofa" (pronunciada com o "o" aberto) não é registrada com o sentido aqui empregado, nem podia ser, pensando bem, já que se restringia ao universo itaparicano dos meus longínquos tempos de infância e se aplicava, que eu saiba, exclusivamente ao grande coronel Ubaldo Osório Pimentel, meu extinto avô materno. Só quem tinha fofa na ilha era o coronel e fui testemunha de algumas fofas dele, coisa de deixar qualquer um arrepiado.

Fofa era o que vou tentar, palidamente, descrever agora. Começava com o coronel tendo uma aporrinhação qualquer. Quem conheceu coronel do interior de antigamente sabe imaginar o magno significado de uma aporrinhação do coronel. Todo mundo tinha que sair da frente, porque ele entrava em casa em passo apressadíssimo e coitado de quem se pusesse em seu caminho para a cama de espaldar alto, em que despencava de costas e iniciava a fofa. Tente pronunciar a letra "f" contínua e repetidamente como quem não tem dentes (o coronel só tinha um, que finalmente caiu, quando ele já estava chegando aos noventinha sem jamais ter ido ao dentista e jamais ter permitido que alguém discutisse dentadura em sua presença) e você terá uma idéia do que acontecia. A rotina era complexa e, na verdade, embora alguns membros da família e dos aderentes da casa-grande tivessem algum know-how de fofa, só quem sabia tratar o problema era Iaiá Pequena, minha avó, mulher do coronel, a única pessoa de quem ele tinha medo — e, aliás, embora ela fosse uma pessoa extraordinariamente boa, todo mundo tinha.

O coronel chegava esbaforido, todo vermelho, jogava para o lado o chapéu que nunca deixou de usar e ia fofar. "Flllllrrrp, flllrrrrp", fazia ele e ecoava o grito de guerra pela casa:

— Chegue todo mundo, que o coronel tá tendo uma fofa!

— Eu nem me aproximava, até porque d. Pequena assumia imediato controle da situação e mandava buscar o vidro de leite de magnésia, guardado imemorialmente numa arca velha. Leite de magnésia foi o único remédio que o coronel tomou na vida, assim mesmo só umas duas ou três vezes. "Vou buscar a magnésia!", dizia vó Pequena e todo mundo outra vez saía de baixo, porque ela não era mulher de ser superada por obstáculos de qualquer natureza, notadamente gente — ela saía no sopapo com a maior facilidade, embora suas preferências, graças ao bom Deus, sempre tivessem sido espinafradas eloqüentíssimas ("cooorrrrno, descarado, filho de uma égua!", ai que saudades também de vovó, que, se estivesse viva, me garantiria o ganha-pão aqui no Rio, tripulando uma escavadeira numa boa).

Aí ela vinha com o vidro, já naquela época arcaico, de leite de magnésia, e o mostrava ao coronel.

— Prrrfllt, fllllrrrp! — fazia ele. — Deixe aí essa merda, que daqui a pouco eu tomo! Afffuuuf, afffuff!

Não me lembro de o coronel, apesar de testemunhos em contrário do resto da família, haver jamais tomado o leite de magnésia. O remédio era d. Pequena ficar em frente a ele, de braços cruzados, enquanto ele olhava fixamente para a garrafinha. O que eles conversavam eu nunca soube, porque era em código, mas posso tentar reproduzir parcialmente o diálogo.

— Prrfffllt, pfufff! Uuufff, uufff, uuufff!

— A magnésia já tá aí, Ubaldo!

— Eu sei, daqui a pouco eu tomo! Pfffrrlllt, pffuff!

— Já, já, ele fica bom — explicava Pequena aos circunstantes. — Ele só precisa ficar espiando a magnésia. Olhem aí, ele já está melhorando.

Era verdade. O coronel não tomava a magnésia, mas ficava olhando para ela fixamente durante uns cinco minutos e a fofa passava.

— Passou a fofa? — perguntava d. Pequena.

— Frrrrllp, uuufff! Tá passando!

E passava mesmo. Até porque, se não passasse, minha avó cumpriria a tremebunda ameaça nunca levada a cabo, que era mandar comprar Vinho Reconstituinte Silva Araújo, de que o coronel tinha pavor, desde o dia em que bebeu um cálice, ficou de porre e cantou todas as mulheres da vizinhança, para embaraço posterior dele e de toda a família (se bem que eu ache que algumas das cantadas colaram; cala-te, boca, as paredes têm ouvidos).

Sim, sofro saudades do coronel, aqui diante dos jornais, a tevê regurgitando barbaridades, ameaças de antraz até na Suprema Corte americana. Meu avô, o coronel, nunca viu cinema, nunca viu tevê e nunca usou nada elétrico, com exceção de lâmpadas, que ele mandava acender, pois que, pessoalmente, jamais tocaria num interruptor. Meu pai, genro dele, sempre foi altamente tecnológico e tudo quanto era novidade aparecia primeiro lá em casa. Aí eu peguei o barbeador elétrico Remington, último tipo, de propriedade de meu pai, liguei-o e me aproximei do coronel. Foi a única vez em que senti que ele ia partir para o desforço físico, pois me deu um safanão e, vermelho como quando tinha uma fofa, me disse: "Encoste essa desgraça na minha cara e eu lhe cubro de porrada, seu sacaneta!"

E assim viveu ele, até chegar perto dos 100 anos, quando a viuvez o arrasou.

D. Pequena, claro, fazia — e faz — falta. Ele nunca viu tevê (saía da sala sem olhar, quando a ligavam, e só voltava depois de ela ter sido desligada) nem foi ao cinema, ao qual nem d. Pequena, cinéfila e fã de Tony Curtis, o forçou a testemunhar. "Depois eu vejo", dizia ele. "Por enquanto não estou precisando." Ai, sim, saudades do coronel. E conto a você toda esta intimidade da família porque descobri, ao ler os jornais hoje, que também vou começar a ter fofas daqui a pouco. Quem sai aos seus não degenera, já dizia Iaiá Pequena.