Beijinho, beijinho

(João Ubaldo Ribeiro)

Quando eu era rapazinho (sei que não parece, mas já fui rapazinho; fui até neném, vejam vocês — pelo menos é o que me garantem os mais velhos), não tinha esse negócio de beijinho para cumprimentar amigas ou mesmo para celebrar apresentações, como acontece hoje em dia. Em Portugal, por exemplo, quando sou apresentado a uma dama, vêm logo os dois beijinhos, no caso habitualmente dados no ar e encostando as bochechas e, no Brasil, isto está ficando cada vez mais freqüente. Quem queria beijar a dama tinha de resignar-se, mesmo que a dama estivesse querendo outra coisa, a um beijo na mão, também comumente dado sem se encostarem os lábios na dita mão. Beijo na cara era porrada certa, fosse da dama ou de seu cavalheiro, ou de ambos.

O tempora, o mores! Hoje todo mundo se beijoca, inclusive homens. Já de muito me resignei a tomar beijos de homens, embora estritamente limitados ao rosto. Quem é careca, então, dificilmente escapa da mesa de fim de semana num boteco sem tomar beijo na careca. Minha careca é beijadíssima, sou forçado a reconhecer. E também, neste ensaio preparatório para uma sociologia do beijinho, devo reconhecer que fui um pioneiro em matéria de beijo na careca.

Vivia eu em Iowa, como uma espécie de escritor-residente da Universidade de Iowa, já lá se vão mais de trint'anos, quando, uma bela noite, saí na companhia dos também escritores Bogomil Gjuzel, macedônio, e Petroff, russo, (esqueci o primeiro nome do Petroff, Freud deve explicar), para celebrar o dia de São Patrício, quando muitas tavernas e bares oferecem chope verde — isso mesmo, chope a que se adiciona uma anilina inodora e insípida, para que ele adquira a cor representativa da Irlanda, cujo padroeiro é São Patrício.

Já bebi coisas piores e não tive muito problema com o chope verde. Tive, sim, problemas com as conseqüências sociais de sua ingestão.

Lá pelo meio da noite, Petroff, que usava vasta barba e bigodeira, onde, por descuido, muitas vezes se alojavam pedacinhos de cebola, pão, salaminho, azeitonas e vitualhas diversas, deu um olhar afetuoso para Bogomil, ergueu sua tulipa e começou uma ladainha meio cantada, que transcrevo aqui, não em russo, pois jamais soube nada de russo, mas mais ou menos do jeito que ouvi.

— Atchs próvnia, shpatítenie, bodovgogna, fulvorraschnik! — entoou Petroff em direção a Bogomil, cujo olhar de pavor e tentativa de fuga só vim a perceber depois da tragédia. — Spritótzni, valfrúchtknie!

E aí, depois de mais umas duas palavras, Petroff marchou para Bogomil e tacou-lhe um tremendo beijo, não beijinho, mas desses tipo desentupidor de pia mesmo, um espetáculo dantesco, Petroff segurando Bogomil com uma gravata bem aplicada e indo-lhe às fuças com irresistível vigor soviético, enquanto a vítima se debatia, sem poder resistir àquele ímpeto de amizade fraterna que se apoderara do russo. Bogomil finalmente conseguiu desvencilhar-se e começou a xingar Petroff. "Roossians, Roossians, I hate ze Roossians!", bradava ele, indo lá dentro lavar a boca, para passar o resto da noite bochechando com conhaque. Petroff lançou-lhe um olhar entre surpreso e condescendente, me explicou que beijo na boca, na Rússia, era coisa de macho e aí olhou fixamente para mim, levantou a tulipa e começou:

— Atchs, próvnia! — principiou ele, me fitando de olhos rútilos e eu, que, além de haver presenciado o ataque a Bogomil, tinha visto jogadores de futebol russos fazerem um gol e correrem para os companheiros já de biquinho pronto, me preveni. Quando ele veio de lá me tacar o beijão, mais que depressa baixei a cabeça e ofereci a careca (desse dia em diante, nunca mais fiquei chateado por ser careca). Ele deve ter achado aquilo ótimo, porque me beijou ardentemente a careca, babou-a toda e continuou felicíssimo. Eu só precisei de uns dois guardanapos e não tive de recorrer a bochechos de conhaque, como Bogomil. Vivendo e aprendendo. Passo a vocês, leitores do sexo masculino (simples mulheres não correm esse perigo, exceto se forem machas), de bom grado, essas informações. Quando um russo levantar o copo em sua direção e começar a russear, usem a careca, ou, se não a tiverem, a cabeça mesmo: dá um pouco de trabalho, certamente, mas é melhor que o chupão petroffiano, pelo menos segundo meu ponto de vista.

Contudo, a sociologia do beijo merece uma abordagem bem mais abrangente e empiricamente testada. As mudanças ocorrem a cada instante. Beijo na boca de gente do mesmo sexo, suspeito eu, é chique. Sorte minha, que nunca fiz questão de ser chique. Beijos na boca de filhos e filhas também, razão por que sou igualmente grato por não desejar ser chique. Mas as mudanças geográficas do beijismo estão a exigir um estudo aprofundado. Por exemplo, no Rio e na Bahia são dois beijos. Já em São Paulo, não faz muito tempo, a norma eram três. Agora é somente um, talvez coisa do FMI. E na boca, ai meu Deus, como tenho sofrido. Não estou seguro, mas acho que já surpreendi maridos meio ofendidos porque não beijo (bitoquinha, claro) as mulheres deles na boca.

E não sou somente eu quem carrega essas graves preocupações. Fico pensando na próxima campanha presidencial e tenho certeza de que Duda Mendonça (que foi meu aluno, veja você; se não tivesse sido, jamais chegaria aonde chegou, é claro) e Nizan Guanaes, os dois marqueteiros eleitorais mais reputados, segundo depreendo do que leio nas folhas, já devem ter em mãos as últimas pesquisas sobre as práticas e costumes beijocais. Se não têm, tomo a liberdade de sugerir que as providenciem. Por exemplo, encontrei, recentemente, pela primeira vez em pessoa, a governadora Roseana Sarney, em companhia de seu pai. Quanto ao pai, não houve problema, graças a Deus, nenhuma tentativa de beijoca — creio que, neste ponto, partilhamos das mesmas convicções ideológicas. Mas, quanto a ela, depois do aperto de mão de apresentação, ficamos bamboleando os pescoços: beijoca ou não beijoca?

Acabamos nos beijocando no ar, modelo bochecha com bochecha. Mas senti que, como candidata, ela precisa de mais know-how, todos precisam. Imaginem se o Serra encontrar o Petroff, Deus tenha piedade dele.