— Não é preciso mais fazer anamnest... Anamsti... Ananes... Deixa pra lá, de qualquer forma é uma palavra difícil para um leigo entender. Não é preciso que eu lhe faça mais perguntas sobre sua doença. Os exames estão claros.
— O senhor desculpe, mas esse eletro aí não está de cabeça para baixo? Eu não entendo nada disso, mas é que o logotipo da clínica está de cabeça para baixo e aí eu imaginei que o exame também está.
— De cabeça para baixo? Sim, claro, mas, como leigo, o senhor não pode saber. A melhor maneira de verificar esses exames é de cabeça para baixo, invertendo-se a perspectiva do facultativo. Enfim, é um probleminha que não adianta discutir. Mas, para tranqüilizar o senhor, eu vou botar como o senhor acha que eu devo. Está aí, pronto. Nenhum problema cardíaco, é óbvio, basta um olhar de relance para ver.
— Ah, então desculpe. Eu não tinha nada que me intrometer, desculpe mesmo. O senhor vai querer ainda algum exame, depois desses?
— Não, não é necessário. Por favor, o senhor pode pegar esse bloquinho na sua frente e anotar a receita que vou lhe dar?
— Eu mesmo vou fazer a receita?
— Algum problema?
— Bem, é que eu nunca ouvi falar nisso. Em vez de o médico escrever a receita, quem escreve é o cliente?
— É que o senhor deve estar acostumado com médicos mais antigos. A prática moderna é outra. Na Faculdade de Medicina de Rávarde...
— De onde?
— De Rávarde, é uma universidade americana de muita reputação. Mas não tem importância, vamos adiante. Escreva aí Xofitol...
— Com "Ch" ou com "X"?
— Também não vem ao caso, o farmacêutico entende. Eles entendem até letra de médico, ha-ha.
— Então está certo. X, O... Não é?
— Meu amigo, eu já disse que o senhor escreve como quiser, o farmacêutico entende, qualquer balconista de farmácia sabe o que é Xofitol.
— Bem, eu estou com um pequeno problema aqui. O senhor é médico e eu posso lhe dizer a verdade.
— O senhor tem que me dizer a verdade, assim como eu também. Do contrário, o tratamento sairia completamente errado. Vamos lá, escreva aí: Xofitol...
— X, O... Bom, eu vou dizer a verdade ao senhor. A verdade é que eu não sei bem escrever, tenho uma certa dificuldade.
— O senhor tem dificuldade em escrever? O senhor não me disse nada sobre isso. Falou que andava estressado, porque, além de ser professor, ainda estava estudando Direito e em dificuldades para manter a família.
— Verdade, verdade.
— Então como é que tem dificuldade em escrever? O senhor é professor de quê?
— Letras, eu sou formado em Letras, ensino em três faculdades e mesmo assim não dá.
— Mas o senhor é formado em Letras e não sabe escrever?
— Bem, uma coisa ou outra, para uso pessoal. Lista de feira, lista de supermercado... Não sai certo, mas eu e minha mulher conseguimos entender.
— Sua esposa é também formada?
— É. Em Letras também. Mas escreve melhor do que eu. De vez em quando, até publica umas resenhas de livros. Claro que sozinha ela não seria capaz, mas o nosso vizinho Chico, o português dono do boteco em nossa rua, dá uma mãozinha.
— Impressionante isso. Formado em Letras e não sabe escrever. Realmente, desculpe meu comentário, a qualidade de nosso ensino...
— Então, então o senhor agora conhece toda a situação. Pronto. Então, por favor, me faça a gentileza de escrever a receita. De fato, Xofitol, não é mole de escrever. Não dá para saber se é com X ou CH, se é com U ou L no final, nossa língua é muito difícil.
— O senhor tem razão. Mas eu não vou escrever a receita.
— Ô, ué! O senhor também não é formado?
— É, mas nunca consegui aprender a escrever direito.
— E como é que o senhor conseguiu passar no vestibular, cursar a faculdade, escrever trabalhos...
— Do mesmo jeito que o senhor. A múltipla escolha é uma grande sacada para os que não tiveram a chance de aprender. E com a Internet, então... Agora é moleza, a juventude de hoje não sabe como é feliz. É só ir nos lugares certos da Internet, para pegar um trabalho sobre qualquer assunto.
— De fato. Mas é um espanto o senhor, médico jovem, mas de tanta fama, não saber escrever.
— E não é um espanto o senhor ser professor de Letras e não saber escrever?
— Bem, é. Tenho que reconhecer que é. Mas também tive uma infância pobre, vim de baixo...
— Eu não tive infância pobre, mas também vim de baixo, sua situação não é nada melhor que a minha. Vamos entrar num acordo. Trocamos segredo por segredo?
— Como assim?
— O senhor não diz a ninguém que eu não sei escrever e eu não digo a ninguém que o senhor não sabe escrever. Fechado?
— Fechado.
— Então vamos lá. Não é preciso apresentar receita para esses remédios. Vamos decorando, como nos bons tempos da faculdade. Xofitol, Xofitol, Xofitol... Pode ser Xopitol também, o balconista entende, é para o fígado.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 23/12/2001.