A moça nua do Leblon

(João Ubaldo Ribeiro)

Sim, é bem verdade que, nesta época do ano, não acontece nada, ninguém quer fazer nada e a imprensa fica sem assunto. Os cronistas, muitas vezes, inventam patranhas variadas, só para que o jornal ou revista não saia com um espaço em branco: “Prezado leitor, queira, por favor, imaginar à vontade uma crônica para este espaço. Não precisa agradecer, é mais um esforço deste jornal para agradar a seu público.” Mas garanto a vocês que, embora não seja melhor do que ninguém, tenho um assunto legítimo, nesta manhãzinha imprevistamente ensolarada, durante a qual escrevo. Talvez seja difícil acreditar, mas é a pura verdade e espero que haja outras testemunhas para corroborar o que digo, não é possível que não haja.

Trata-se da moça nua do Leblon, que já vi uma vez à noite e duas de dia. Mais recentemente, ela não tem aparecido, mas nutro a firme esperança de que não se trate de uma visitante ocasional e, sim, de uma residente fixa, que fique aqui por mais algum tempo, para descansar estas minhas retinas tão fatigadas. Em outros tempos, talvez, ao vê-la, eu não pensasse em descansar as retinas, mas agora me encontro na tradicional condição do cachorro que persegue um carro. Se alcançá-lo, que vai fazer com ele? Talvez eu pudesse conversar com ela, se ela também tem raiva de computadores, gosta de cachorros, leu Shakespeare ou espiou protozoários num microscópio, entre outras pouquíssimas coisas sobre as quais consigo falar mais do que cinco minutos — e olhe lá.

Por dever de honestidade, devo esclarecer que ela não aparece propriamente nua. Mas aparece mais provocante do que se estivesse nua em pêlo. Na primeira vez, eu estava na minha viagem diária à grande pastelaria leblonina Rio-Lisboa, da qual sou tradicional freguês e onde compro perfeitas inutilidades, a não ser para minhas crises de idoso, em que como aqueles biscoitos recheados de que até menino enjoa na terceira dose. Estava eu a deliberar sobre se ia comprar tititipos de chocolate ou choque-choques com leite de coco, quando, causando uma leve aragem e roçando levemente no meu ombro, ela fez sua passagem suavemente aromada, entre mim e uma prateleira. Não estava pelada, como já disse. Estava com o vestido de malha branca, sem, tenho certeza, nada por baixo. Não fiz um exame de mão, é claro, mas ela estava obviamente com o vestido em cima da pele.

E era, minhas senhoras e meus senhores, uma moça como hoje pouco se vêem. Eu, ai de mim, sou do tempo da mulher violão, cintura fina, cintura de pilão, cintura de menina, vem cá, meu coração, nas imortais palavras do bardo Luiz Gonzaga. Hoje a malhação, em sua obsessão de eliminar os famosos (e, se bem dosados, charmosos — não sou somente eu quem pensa assim) “culotes”, tirou as cinturas das mulheres e as tornou retangulares, tanto que a maior parte das gostosas do momento só posa para fotos curvando a cintura, fingindo terem o que não têm. Ela não. Ela tinha cintura e não precisava rebolar para enganar. Longilínea, falsa magra, pernas impecáveis e — juro, ou quase juro, a vocês — sem nada por baixo do vestido. Eu, que já estava para me despedir de minha visita pasteleira, inventei diversos pretextos e comprei várias outras inutilidades, somente pelo prazer de vê-la passar, como um anjo diáfano, entre pacotes de pães e latas de conservas. Ela estava nua e, quando me dei conta — isto porque a observava com o que espero ter sido discrição e de vez em quando afetava interesse por bolachas e sardinhas — ela sumiu.

De volta a casa, pensei que talvez houvesse bebido demais no dia anterior, talvez estivesse tendo alucinações senis. Mas não, dois dias depois, não mais de noite, mas por volta das dez da manhã, ia eu ao banco, pegar uns caraminguás para comprar revistas e jornais, quando deparo com ela outra vez. Novamente estava com um vestido branco, mas não era o mesmo com que a vi pela primeira vez. Era — desta vez eu juro mesmo, sem reservas — um vestido de tecido mais fino que a malha da noite anterior e de novo ela estava sem nada por baixo. Não era possível que ninguém notasse, porque se via tudo, ou a sugestão de tudo o que é mais encantador, se não for ostentado. Corri o olhar em torno, para ver se alguém partilhava de meu pasmo, mas ninguém parecia notá-la, só eu mesmo. E, quando passamos um pelo outro, ela me esboçou um sorriso. Um sorriso para um coroa das vizinhanças, mas, de qualquer forma, um sorriso de deusa nua.

Tornei a sentir-me com demência senil, até porque se passaram umas três ou quatro semanas sem que eu a visse outra vez. Sim, claro, eu estava tendo alucinações, era o resultado de uma vida não muito regrada e desperdiçada em atividades pouco construtivas, o que lá queira dizer isto. Conversei sobre o caso com alguns amigos de boteco, todos me ouviram caridosamente, nenhum deles havia jamais visto a moça, fingiram elegantemente acreditar no que eu contava. Contudo, a justiça foi feita e a benévola vingança chegou. Encontrava-me eu num dos botecos da minha preferência, na esquina da Dias Ferreira com a Venâncio Flores, quando, de súbito, ei-la que surge! Nua novamente, com um vestido parecido com os outros, só que desta vez conduzia um poodle, também branco, pela coleira.

— Olhem, olhem! — clamei.

Mas, entre esse “olhem, olhem” e a passagem dela, correu talvez um segundo e ela sumiu pela esquina, em direção à Visconde de Albuquerque. Homens de pouca fé, os companheiros de boteco não se dignaram a levantar-se para vê-la, desaparecendo à distância. Aliás, eu mesmo, desconfiadíssimo, tampouco me levantei. Devo tirar férias nos próximos dias, minhas caras amigas, diletos amigos. Acho que estou precisando. E vocês também.