Ici, Paris

(João Ubaldo Ribeiro)

Por favor, tenham paciência. Estou aqui em Paris e não entendo nada desta cidade tão carregada de História para todos nós. Não entendo nada mesmo, pardon Brésil, pardon Bahia. Acabo de sair, algo ébrio, de um restaurante, fotografei um amigo que fazia questão de posar sob a Torre Eiffel e sob o Arco do Triunfo, para mostrar, como prometeu, à sua santa dele esposa, que ele apareceu em lugares os quais, por azares do destino ingrato, ela nunca freqüentou e escrevo agora de um local que consegui, no escritório central do pequeno, mas extremamente simpático, hotel onde nos meteram. Claro que meu provedor brasileiro, por incompetência minha ou dele, ou de ambos, não funcionou como se esperava, de forma que meu senso de dever jornalístico, para o qual não pode haver pecado mais grave do que deixar de entregar a matéria no prazo previsto, me compeliu a voltar dois dias antes do prazo (e, quando chegou aqui, a diabólica engenhoca ainda se recusou a trabalhar sem a presença de Izabel, minha personal trainer informática; quando ela apareceu e fez uma caretinha para ele, num instante ele se enquadrou.)

Como eu gostaria de falar de Paris da mesma forma que tantos outros escritores, a começar e nunca terminar por Hemingway! Eu gostaria de aparentar tanta familiaridade por esta cidade inigualável — ah, mas Deus não dá asa a cobra, muito menos a minhoca. Como de hábito, não me ocorre nada inteligente ou poético para dizer, nem enfrentei epifanias de qualquer tipo, inclusive as culinárias. Fiquei foi basbaque mesmo e disse as mesmas besteiras que qualquer visitante sem veleidades literárias diria.

Conto a vocês, entretanto, alguns episódios do que se passou. Embarquei no horário, segui no horário, mas o comandante era por acaso meu amigo e me convidou para testemunhar a decolagem a partir da cabine de comando. Ai, amigas e amigos, como sofri, eu que tenho tanto medo de altura que para mim subir ao Corcovado é mais estrênuo esforço que escalar na munheca o dito Corcovado, onde, aliás, jamais estive e o qual jamais deverei visitar, que me dê perdão o sempre misericordioso Bom Senhor. Vocês talvez não acreditem, mas o que se passa, enquanto eles simpaticamente ligam botões a dez por segundo e falam com a torre como se nada estivesse acontecendo, é alucinante. Não contem isto a meu amigo comandante, mas a verdade é que, enquanto cumpriam procedimentos para eles quase sempre bocejantes, eu tinha a sensação de que preferia estar em qualquer lugar que não fosse aquele, até na varanda de um oitavo andar (depois desse limite, não chego nem perto de janela nenhuma).

Competentíssimo, como eu já sabia, o comandante, competentíssima a simpática tripulação, nada que justificasse meus receios leigos, ainda que continue a me ser estranho como é que eles vêem alguma coisa, naquela nesga transparente que lhes é oferecida. Bem, decolamos, viajamos e conversamos durante as quase doze horas em que estivemos no ar. Os problemas só começaram a aparecer depois que chegamos a Paris. “Proibido fumar!”, anunciavam alto-falantes em toda parte, enquanto todo mundo, com minha paranóica exceção, acendia cigarros e reclamava de tudo. Não que não tenhamos tido alguma coisa a reclamar, a não ser quando desembarcamos no famoso Primeiro Mundo.

O primeiro incidente ocorreu quando todos tiveram que, pelo demorar das malas (problema na rampa de desembarque), ir fazer um natural xixi. À porta dos banheiros das senhoras, havia uma fila angustiante, que dava um aperto no coração a quem a via. No dos homens — pasmem! — um vaso entupido e tudo em torno alagado e coberto de destroços repulsivos. Estou seguro de que, na estação rodoviária da brava Cocorobó, interior da Bahia, a situação seria melhor, mas poucos lá haverão de ter lido Sartre e pouquíssimos ousariam comparar sua situação a uma desagradável coincidência de situações entre o Primeiro e o Terceiro Mundo. Ça va. E as malas demoraram mais do que a votação da Comissão Permanente sobre Operações Financeiras ora, acho eu, em trâmite no Congresso Nacional. Em relação a pipi, aliás, as mulheres, quiçá por não contarem com mecanismos tão, digamos, portáteis como os do homem, demonstraram ter problemas nessa área o tempo todo, a ponto de uma, para estarrecimento geral, entrar de nariz empinado no banheiro masculino do Salão do Livro e se aboletar, de porta aberta mesmo, numa privada. Foi premiada com olhares e comentários de grande admiração, da parte da esmagadora maioria masculina.

Em Paris, inaugurava-se a primavera, a estação das flores e de Frank Sinatra cantando “April in Paris” (março, ainda, mas há licenças poéticas e a primavera começava precisamente no dia em questão). Flores, sim, em alguns canteiros, mas o resto tudo molhado como no banheiro do Aeroporto Charles de Gaulle, coisa que nos mataria de vergonha no Brasil e nos faria aceitar de bom grado a penúltima colocação, o que lá seja isto, na Copa do Mundo. Um sorriso da cidade-sorriso, somente com um pouco de mau humor por talvez haver revisto um filme de Godard.

No departamento profissional, acabei fazendo menos do que esperava, embora, como sempre, cumprindo tudo o que me mandavam e cumprindo outras coisas que ninguém mandava, mas eu achava que eram minha obrigação. O Salão do Livro este ano foi dedicado à Itália, que se desincumbiu garbosamente. Nós, brasileiros, contudo, tampouco fizemos vergonha e nosso stand estava belamente sortido e bem montado. E demos lá o nosso showzinho de alta tecnologia, como convém a países emergentes e complexados. Participei de duas teleconferências via Embratel. E mais não conto porque acho que ninguém está a fim de saber das emoções de um caipira assumido, diante das maravilhas da Cidade-Luz. Boto as mãos para o céu, aliás, por escrever estas maltraçadíssimas ainda a tempo de pegar o fechamento do jornal. Desculpem qualquer coisa e, da próxima vez, exijam melhor escolha do que eu para representar a pátria amada.