A guerra permanente

(João Ubaldo Ribeiro)

Quando eu era rapazinho, creio que, em um ou dois filmes cuja ação se passava em Roma antiga e que durante um certo tempo eram muito comuns, vi algumas cenas em que dois patrícios romanos, com ar preocupado, falavam-se:

— Tu não acreditas que estamos atravessando uma fase muito difícil, política e socialmente?

— Acredito, como sei que tu também deves acreditar. Acredito mesmo (pausa dramática) que estamos entrando em plena Decadência do Império Romano.

— Eu penso da mesma forma. Se é que já não estamos lá, se é que já não estamos lá!

Evidente que esse diálogo nunca transcorreu, pelo menos dessa maneira, porque o próprio conceito de decadência do império romano só tomou forma depois e ninguém vivia falando nisso. A vida ia prosseguindo como sempre e a História, lentamente, ia se plasmando.

Agora, porém, já se passou tanto tempo que esse tipo de cena pode acontecer, não é tão absurda assim. Depois de dezenas e dezenas de séculos, a Humanidade permanece em guerra, de tal forma que já nem prestamos atenção nela, nem nas suas conseqüências, como a fome e a doença, que matam milhões no mundo todo. Provavelmente já há muitas conversas sobre como não duraremos como espécie ou, se o fizermos, será de forma muito diferente da de agora. Apesar de todo o progresso e de delírios otimistas aqui e ali, nos quais até eu eventualmente tomo parte, embora cada vez menos amiúde, a verdade é que permanecemos uma espécie atrasada e irracional, condições de que, apesar de todas as tentativas (poucas delas de fato sérias), não conseguimos realmente nos livrar.

Penso no Brasil. Há muitos e muitos anos, quando a situação ainda não tinha piorado como piorou, estarrecido com a notícia de um fato policial em São Paulo cujos detalhes esqueci, comentei que estávamos em guerra civil. Ou pelo menos dentro de uma mentalidade de guerra civil. Já não se roubava mais simplesmente para surrupiar os bens alheios. Era necessário também manifestar ódio e hostilidade. Pegava-se tudo sem resistência, mas, mesmo assim, torturavam-se e matavam-se as vítimas. A troco de nada material, a troco de um ressentimento mortal, ódio mesmo, mentalidade de guerra civil de ideologia caoticamente formulada, como rotineiramente ocorre hoje. Assalta-se o sujeito, leva-se o carro e tudo mais que ele tem em seu poder e, depois, ele é assassinado ou até torturado antes disso. É ódio, não é mais simples cupidez desonesta.

Escrevem-se ensaios, fazem-se pesquisas, espalham-se denúncias pela imprensa, não se chega a conclusão satisfatória nenhuma. Apesar das bravatas pronunciadas em ocasiões solenes, quando não se poderia esperar outra coisa, o Estado perde o monopólio da violência e da coerção a cada dia e não se vê solução, antes horizontes sempre mais ensombrecidos. O habitante da cidade grande — o Rio de Janeiro, por exemplo — já se habituou a comportar-se como em um país em guerra, sua população já incorporou hábitos de quem vive em estado de guerra civil e não tem a quem recorrer.

Não tem mesmo. Um bandido notório é preso, ri das autoridades e, no dia seguinte, continua a gerir seus negócios ilícitos a partir de onde esteja confinado, cercado pelo poder em sua própria esfera e pelo que atinge, via corrupção ou coação, nos quadros ditos oficiais. E em que confinamento pode-se mais acreditar? Não me refiro a leis frouxas e ineficazes, além de magistrados pouco dignos, refiro-me à estrutura mesmo. Um bandido ferido é internado sob vigilância e o hospital é invadido para seu “resgate”. Criminosos são presos em flagrante e a delegacia é também invadida e metralhada. Não há segurança alguma, desde o uso de cartões bancários até a realização de festinhas familiares ou passeios com a família.

Já usei esta expressão aqui, mas creio que ela deve ser lembrada. Não existe mais um regime como o traçado pelo arcabouço jurídico do Estado; existe, numa cidade como o Rio de Janeiro (e viu-se eloqüentemente Belo Horizonte, não faz muito tempo), uma poliarquia, a divisão do poder entre verdadeiros suseranos modernos. Bairros inteiros, verdadeiras cidades, são sujeitos a seus próprios governantes autonomeados e mantidos pelos rios de dinheiro gastos com a compra de tóxicos, com a qual as classes menos expostas mantêm, de várias formas, seus próprios venenos. Não se vê mais como escândalo alguma (mantém-se, de modo geral, uma certa discrição, acho que por vergonha mesmo) autoridade só poder entrar em certas áreas da cidade apenas depois da permissão do traficante-governante. Fecha-se o comércio, decretam-se feriados escolares, fornece-se assistência médica e até judiciária, realizam-se inacreditáveis prisões, julgamentos e execuções e tudo permanece como está. A realidade é assim e assim prosseguirá.

Prosseguirá mesmo? Todo dia os jornais noticiam que os bandidos dispõem de armamentos tão ou mais modernos do que a polícia ou mesmo as Forças Armadas. Parecem patéticos hoje os carros blindados em que os ricos se abrigam, quando o tráfico já revelou possuir armamento antitanque. Chegará o dia em que os tanques procurarão dar cobertura à infantaria que tentará ocupar os pontos críticos e esses tanques serão destruídos por armas superiores a eles? Virá o dia em que os acessos aos pontos de tráfico serão minados? Haverá o dia em que algum comando anunciará a suspensão do tráfego na Linha Vermelha, por esta se encontrar também minada? Mão-de-obra qualificada é que não falta ao tráfico, fornecida por ex-militares de treinamento superior, desligados de suas corporações. Veremos o dia em que o próprio Estado preparará seus inimigos, já estamos vendo esse dia?

Não, se houvesse um momento de otimismo delirante hoje, eu não participaria. As interligações entre organizações ideológicas e criminosas estão cada vez mais intensas. O dinheiro para as armas e os homens não seca. Não, hoje eu não estou otimista. Estou vendo é a guerra se fechar em torno.