— Que sacola enorme é essa?
— São os remédios de minha sogra, que eu fui pegar na farmácia aqui do lado. Agora o orçamento lá de casa é subordinado aos remédios de minha sogra.
— Tua sogra não recebe pensão do marido, não?
— Tu chama aquilo de pensão? Eu chamo aquilo de dinheiro pra pipoca. E pipoca sem sal! Além de tudo, ela não recebe nada.
— Não entendi.
— É fácil. Ela está em litígio com o INSS faz oito anos. Toda semana eu vou lá, ver se já resolveram, e não resolveram nada. A última foi que o cadastro dela se extraviou e eu vou ter de providenciar um atestado de vida pra ela e uns outros papéis que só com despachante e nós ainda não arrumamos o dinheiro pra pagar o despachante. Tem até um tratamento que um médico disse que ia melhorar ela muito, mas não tem vaga no SUS e só um dia desse tratamento levava uns oito supermercados lá de casa. De forma que nós vamos vivendo assim mesmo, que é que se vai fazer. É a velha de minha mulher, a gente não vai jogar pela janela. Se bem que vontade... Deixa pra lá, essas coisas de família a gente não sai comentando nem com os amigos como você. Mas não é isso que eu quero falar, é outra coisa! Tu viu dois caras, um com cara de paraíba, outro magrelo de boné, que tavam tomando chope aqui?
— Não, não reparei.
— Pois devia ter reparado. Eu fiquei besta com a calma do Ildefonso.
— Que Ildefonso, o da farmácia?
— E qual que é o outro Ildefonso que tem aqui, se não for o da farmácia? Quem bota o nome de Ildefonso no filho hoje em dia? Só se for Ildefonso Filho. Cara, impressionante o jeito dele, parecia que não tinha acontecido nada.
— Tu já deve estar de porre, não estou entendendo nada.
— Tá legal, eu te explico. Quando eu cheguei na farmácia, ela tinha acabado de ser assaltada e o Ildefonso na maior calma, brindando com Maracugina junto com os balconistas.
— A farmácia foi assaltada agora?
— Eu tou falando grego? Foi o que tu ouviu, tinham acabado de assaltar pouco antes de eu chegar! É a terceira vez este ano, e o Ildefonso ainda brinca, dizendo que quer entrar para o Guinness em matéria de assalto a farmácia.
— Menino, a essa hora do dia, com todo mundo circulando?
— E tem essa de horário? Assaltante só assalta na hora que quer, deve ser alguma espécie de inspiração. E sabe quem foram os caras?
— Não brinque, foram esses dois caras de que tu falou?
— Adivinhão! Esses mesmos dois caras. Eles pegaram a grana toda e aí avisaram ao Ildefonso que desse uns quinze minutos, porque eles queriam tomar um chopinho aqui.
— Meu D... E o Ildefonso não fez nada, não chamou a polícia?
— Tu pensa que o Ildefonso já conseguiu chegar nos setentinha sendo otário que nem tu? Ele sabe das coisas, cara, ficou na dele e até deu mais tempo, porque pintou a dúvida sobre se os caras não iam querer tomar mais de um chope, não se pode facilitar.
— Absurdo, absurdo! Como é que se pode viver assim?
— É verdade. Eu mesmo tenho pensado muito em me mudar para o Benim, lá tem uns crioulos aparentados comigo e quem sabe eu não ia viver de criar cabra? É melhor.
— Não, não é melhor! O Brasil é um grande país. O problema é a corrupção, o principal problema é esse.
— Concordo, é um grande problema. Mas não é o problema principal.
— Acho que é, sim.
— Pois eu te conto um negócio que vai fazer tu mudar de idéia. Tu te lembra do Pacheco?
— Lembro, nunca mais vi. Ele era especialista em informática, não era? Bom cara, muito educado. Mas que fim levou ele? Nunca mais vi mesmo.
— E não deve mais ver, só se for por acaso. Ele foi chutado do emprego depois de 18 anos de serviço e agora está morando num quarto-e-sala em Brás de Pina e ainda botando as mão para o céu, porque conseguiu comprar uma casa e está dando, mal e porcamente, para sustentar a família. Ele conseguiu outro emprego. Agora é agente penitenciário numa prisão de segurança máxima. A função principal dele é passar celulares para os chefões da cadeia.
— Mas o Pacheco? O Pacheco sempre foi um homem tão direito, como é que ele foi entrar nessa?
— A necessidade é a mãe da porcaria, tu vive onde? Deixa eu te reproduzir um diálogo que ele teve com um dos chefões. O chefão mandou chamar ele para uma conversa, tratou ele com muita gentileza e ele até ficou na esperança de que a missão fosse passar outro celular, que ele já tem know-how. O chefão disse o endereço do Pacheco, falou o nome das três filhas dele, falou no nome da mulher dele e até deu o endereço completo dele. Aí falou: “Esta semana, eu vou querer uma picareta aqui e você vai me fazer a fineza de trazer, eu gostaria muito de saber que sua família está em perfeita saúde, bela família você tem.”
— Uma picareta?
— Pois é. O Pacheco também não sabe como resolver o problema, mas tem de resolver. Ou isso ou adeus.
— E como é que ele vai fazer?
— Ele não sabe, mas já está pensando numa solução. Tudo tem solução. Ele está pensando em passar a picareta usando ela como supositório. A gente se acostuma a tudo nesta vida. Que era que tu ia fazer, com um pedido desses?
— É, pensando bem, picareta pode dar até um bom supositório. Daquelas pequenas de cabo lisinho, envernizadas, não é?
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Globo em 28/07/2002.