A clique de mouse

(João Ubaldo Ribeiro)

Modéstia à parte, tenho mais experiência em eleições que a maioria de vocês. Repilo os engraçadinhos que atribuam isso à minha já avançante (avançada ainda não) idade, embora não possa negar que ela desempenha um certo papel nesta situação. Diferentemente dos outros membros de minha mesa de boteco, onde costumo ser o menos jovenzinho, cheguei a votar nas eleições que levaram Jânio Quadros à Presidência, embora minha escolha tenha sido o marechal Lott, candidato das esquerdas, o que lá quisesse dizer isso. Como já contei aqui, fiz muita força para ser comunista, mas não consegui e votar em Lott fazia parte. Além disso, vi Jânio falar na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, onde eu estudava, e fiquei com medo dele. Mas, quando, logo mais tarde, votar passou a ser o exercício temporário de um “direito” que não se sustentava, até por causa das cassações, eu já tinha uma bagagem eleitoral invejável.

Meu avô materno, o intimorato coronel (não do Exército ou da PM, mas do interior mesmo, da velha estirpe) Ubaldo Osório, com a assessoria da não menos combativa avó d. Pequena Osório, era mestre em eleições. Tudo parecia tão desorganizado quanto a enorme biblioteca dele, que consistia numa casa de dois cômodos e sem estantes ou mobília, onde se andava na ponta dos pés para pisar no menor número de livros possível e dava vontade de pegar um facão para abrir uma picada entre os volumes, mas onde ele achava instantaneamente qualquer livro que quisesse. Quem visse as coisas na superfície, acharia que a desorganização era geral, mas se equivocaria redondamente.

Por exemplo, como muitos outros coronéis nordestinos, meu avô foi pioneiro do voto para o analfabeto. Esta juventude de hoje, adolescente dos cinqüentinha para baixo, pensa que conquistou o direito de voto para a vasta porção do eleitorado brasileiro que não sabe ler. Grave erro histórico. Isso é porque nunca viram o departamento de desenho de assinaturas capitaneado por d. Pequena, com a assessoria de alguns auxiliares de confiança. O pessoal do Baiacu, arraial da ilha até hoje meio longe do resto do mundo, era o que dava mais trabalho, porque, de uma eleição para outra, muitos desaprendiam a desenhar o nome. Minha avó punha em prática métodos revolucionários, de resultados imediatos, mas não duradouros. O tratamento era individual, porque experiências como a do quadro-negro falharam clamorosamente, numa eleição, não me lembro qual, em que o pessoal ficava diante do quadro-negro com um lápis e um papel na mão e, no fim do dia, constatava-se que muitos haviam aprendido a desenhar o nome errado, o que não ficava bem na hora da votação, ocorrendo casos deploráveis, como Edinovaldo da Conceição assinando Alzanelvira dos Santos, ou vice-versa.

Independentemente do voto, a liberdade do eleitor era total. Havia um grande número que só aceitava votar se fosse calçado com sapatos legítimos e de paletó e gravata; feria a honra aparecer sem esses adereços cívicos. Nenhum problema. O departamento de vestuário cuidava de tudo e diversos voluntários ficavam à espera dos votantes, para retomar-lhes o paletó, a gravata e os sapatos, para uso dos seguintes, o que não era obstáculo sério, já que a fila dos eleitores começava a formar-se de madrugada e só acabava à noite. Desenhar o nome sem saber ler não é empresa das mais fáceis e, compreensivelmente, alguns levavam seus dez a quinze minutos para concluir a operação.

A introdução de elementos religiosos nas campanhas também não é novidade, como muitos de vocês também pensam, quando lembram o “voto evangélico”, hoje muito em voga. Na ocasião, protestante era considerado herege e muita gente se benzia quando passava por um deles. Mas, na eleição em que Cristiano Machado, do PSD, concorreu com Getúlio Vargas, do PTB, e perdeu, muitos votos pessedistas foram obtidos sob a alegação de que o eleitor, com essa escolha, se cristianizava. Verbos como “collorir”, “malufar” e semelhantes foram de longe precedidos por “cristianizar” e diversos destinos eleitorais devem ter sido decididos sob essa óptica religiosa.

Quanto à escolha de candidatos, ainda peguei o tempo dos envelopes e das chapas, o mais eficiente de todos. O eleitor ia à casa do coronel e recebia o envelope já com todas as chapas dentro, papeluchos impressos com os nomes dos candidatos, dos partidos e dos cargos. Na boca-de-urna, havia especialistas em examinar envelopes a pretexto de uma fiscalização fictícia qualquer e trocar esses envelopes por outros, contendo outras chapas, o que só fazia estressar o coronel, muito atilado para tal tipo de tática baixa. Se não me engano, chegou a espalhar-se a história de que a mão de quem trocasse de envelope murcharia e cairia em pouco tempo, como castigo pela gravíssima infração.

Quando um voto mais difícil ou valioso era comprado a dinheiro, também a modernidade de métodos se impunha. A nota, ou notas, de dinheiro era cortada ao meio e a metade que ficava em poder do cabo eleitoral só era dada ao eleitor depois que o resultado das urnas saía. O controle era tanto, que os comandantes de campanha sabiam de quem ia votar em quem em praticamente todas as seções, de maneira que acho que, se injustiças houve nesse setor, foram muito poucas. Enfim, eram os famosos bons tempos.

Hoje não, hoje é a era da informática e nem materialidade, em rigor, o voto tem mais. É um sinal magnético, cuja segurança é garantida por muitos e questionada por outros, a quem ninguém dá atenção e que são chamados de paranóicos delirantes pela maioria. Eu estou na minoria paranóica, até porque, ao que parece, há o desejo muito apregoado de fazer crer que a depressão de 1929 voltará, se elegermos o candidato errado. Não é que não acredite, mas bem que podia haver um pouco mais de segurança para o resultado da votação. Mas não há de ser nada. Quem nasceu praticamente na época da eleição a bico-de-pena pode muito bem se acostumar à eleição a clique de mouse. “Plus ça change...” Quanto mais tudo muda, mais tudo fica a mesma coisa.