Rafaela avisa

(João Ubaldo Ribeiro)

Os fatos mais óbvios perpassam pelos nossos olhos e não os notamos. Xantipa, mulher de Sócrates, tem uma fama horrorosa, mas chegará o dia em que ficarão (eu não ficarei, espero não estar mais por aqui) com saudades dela, que sempre contou com minha simpatia e compreensão, ao contrário de Aspásia, a badalada mulher de Péricles, que — Deus me perdoe, se faço julgamento errado — me parece mais uma perua emergente do que qualquer outra coisa. Xantipa não podia deixar de pegar no pé de Sócrates, um sujeito que não sabia que era um gênio cujo pensamento duraria talvez até o fim dos tempos e, portanto, não tinha direito a ser o chato que era. Bernard Shaw, se não me engano, num dos seus famosos prefácios, dizia que era compreensível que os atenienses tivessem acabado por condenar Sócrates a beber uma cuia de chá (ou suco, não entendo bem desses venenos filosóficos) de cicuta, porque não agüentavam mais ser transformados em imbecis sempre que ele abria a boca para falar, ou seja, presumivelmente, quando não estava dormindo. Quem quer que já tenha lido o começo de “O banquete” não pode ficar indiferente à tortura infligida a um pobre escravo do anfitrião, submetido a mais perguntas do que um suspeito do FBI — e todas chatas. Gênio, gênio, tudo bem, mas ergo um brinde a Xantipa, o que aliás, cabe muito bem aqui, porque o verdadeiro nome de “O banquete” é “O simpósio”, que quer dizer, literalmente, enchimento de cara coletivo, um fala-pau, como se dizia antigamente em minha terra. O pessoal apareceu só para tomar umas e outras numa bela boca-livre e Sócrates pintou, estranhamente elegante, limpo, cheiroso e calçado, dizendo que estava indo à casa de um rapaz bonito, o Alcibíades, que era o galã da novela das oito da época... Não, chega de fofocas clássicas, vamos a Rafaela, que está muito mais próxima de nós.

Esta notícia não é possível que vocês não tenham lido. Rafaela é uma sucuri de zoológico que acaba de dar à luz umas duas dezenas de filhotes, dos quais três ou quatro sobreviveram, todas fêmeas. Até aí, nada demais. Só que Rafaela, que já está ficando coroa, não teve nenhum contato com um macho da mesma espécie, é a única sucuri legítima do serpentário onde reside. Todos os especialistas que lá trabalham acharam isso esquisito, porque só há duas hipóteses, excluindo a de um herpetólogo (dicionário, dicionário, hoje é domingo, dia de prometer que, de segunda-feira em diante, faremos exercício todo dia) voyeur ter aparecido lá na calada da noite, com uma sucuri macho (não sei se há nome para sucuri macho, mas, familiarizado com a nossa hospitaleira quão decadente língua, imagino que seja socomurucaçá, assim como “aliá” é fêmea de elefante), para curtir um espetáculo de sexo explícito, no caso sensacional, porque envolveu duas cobras — ou não tão sensacional assim hoje em dia, pensando bem. Ou Rafaela cruzou com um jibóio (ou babacumeluno, ou coisa do mesmo jaez) que anda por lá, assim dando origem a algumas improváveis sucuribóias, ou, já desesperada com o celibato e querendo experimentar as alegrias da maternidade, concebeu as cobrinhas por partenogênese, ou seja, sem a colaboração de um macho.

Como, perguntarão vocês, e esclareço que, em matéria de sexo, os animais são muito mais criativos até que os baianos. Barata mesmo, quando se vê sem macho, vai de partenogênese. Uma certa polva (fêmea do polvo, “octopuela”, talvez) é tão desconfiada de machos que ele é obrigado a recorrer a um golpe baixo, o qual consiste em soltar um tentáculo a vagar pelo mar adentro. A fêmea vê penalizada aquele amputado terminal, chega perto e, quando se dá conta, o tentáculo se revela um pênis ambulante, que entra e não sai mais, rendendo uma filharada aos genes do safardana. A minhoca se engaja em algo designado por um número que um jornal de família, como este, não acolheria de bom grado, faz sexo de mão dupla e não tem que se preocupar com problemas domésticos comuns às mamães e papais em convivência, eis que toda minhoca acaba sendo mamãe e papai ao mesmo tempo.

Já li desmentidos, acho que no “Scientific american” ou assemelhado, mas a fêmea do louva-a-deus come mesmo o macho, enquanto ele, distraído e romântico, manda tocar “Moonlight Serenade”, logo antes de ela dar uma mordida na cabeça dele e devorá-lo até a última membrana. Assisti a diversos casos, quando criança de férias em Itaparica; é verdade. Um outro inseto, de que tomei conhecimento, desta vez com toda a certeza, no dito “Scientific american”, só é aceito pela fêmea se levar uma presa fresquinha para ela comer, enquanto, digamos, ele também come — no bom sentido, é claro. Pois há machos desses insetos que viram uma espécie de travesti e ficam de plantão, espreitando outros machos a se arriscar entre passarinhos e outros predadores, para pegar o filé da moça. Os sem-vergonha bancam o travesti, rebolam, paqueram, fazem tudo, até que o otário pensa que pegou uma fêmea e deposita o lanche na frente dele, que, mais que depressa, vira macho novamente, abiscoita o presente e vai pegar uma fêmea que ele já vinha tocaiando há tempos. Certos peixes de corais vivem numa espécie de harém, com várias fêmeas. Quando o macho morre, possivelmente por não agüentar mais assistir à novela em vez do futebol, uma das fêmeas vira macho e ele não faz falta nenhuma. Até galinha age de maneira semelhante. Quando não há galo no terreiro, não é que uma galinha vire macho, mas passa a cumprir os papéis e a coreografia dos machos. O lesbianismo galináceo é velho conhecido dos donos de galinheiro de quintal no mundo inteiro.

Enfim, é um nunca-acabar. Que quer dizer isso, diante dos avanços galopantes das mulheres, que antes gostavam de homens mais velhos talvez por questões inconscientes de segurança e agora só aceitam carne fresca e sarada, além das muitas outras que de homem não querem nem saber? Quer dizer, meu caro amigo, que nosso destino de zangões cada vez mais se aproxima. Já é teoricamente e em breve será praticamente viável uma mulher fertilizar outra, usando uma célula qualquer de seu organismo. Ah, meu tempo! Prepare-se, porque, mais cedo ou mais tarde, você, homem, estará dispensado de suas funções e viverá de lavar pratos, tripular o tanque de lavar e não falar nada se não for chamado. Atenção no que avisa a Rafaela.