Voltando, sem muita convicção

(João Ubaldo Ribeiro)

Como sabem os pacientes e bondosos leitores destas linhas, andei ausente. Para alívio de muitos, receio; e saudades de uns poucos, espero.

Foi sem querer. Eu de fato estava pretendendo tirar umas férias e ia estrear em grande estilo, com uma ida à França, para buscar um prêmio que (sic) me deram lá. Mas não tive tempo nem de pensar no que ia fazer nas semanas que se seguiram. A malha médica me pegou feio e, creio mesmo que desta vez quase embarco para o lugar de que nunca nenhum viajante voltou, o que pode ser bonito lido em Shakespeare, mas, quando é com a gente, perde imediatamente o charme.

Como sempre, a ingrizilha começou depois da meia-noite, lá por uma hora da manhã. Falta de ar, sensação de que o Olodum resolvera ter uma crise de identidade em meu peito, enfim, aquela hora em que a gente pensa que chegou a nossa vez de enfartar e não consegue lembrar-se de nenhum dos conselhos que recebeu ou leu a respeito de como proceder, ao ter um enfarte, antes de o socorro (tarde demais, sempre lemos nos jornais) chegar. Macho que nem a necessidade, me recusei a obter ajuda médica (na verdade, macho, sim, mas com medo de médico e injeção), até que não deu mais. Meu clínico (tenho esses luxos) me levou ao hospital no próprio carro, minha mulher nos fazendo companhia.

No caminho, melhorei, comecei a fazer piadinhas, esquecêssemos aquilo tudo, nada que um bom uísque não conseguisse sanar, era um livro entalado no juízo que estava me atanazando, voltar para casa era rápido. Nenhuma resposta.

Aliás, ele só voltou a falar comigo depois que me haviam enfiados tubos e fios por todos os buracos do corpo e mais alguns que eu nem sabia que tinha e me acoplaram à Nasa, somente com uns dois ou três monitores a mais. Fiquei lá, apitando, arfando e uivando, uma máscara enfiada no focinho que não chegou a me impedir de falar outra vez com o médico.

— Escuta, isto é realmente necessário? Não é nada que uma bolinha sossega-leão, até uma injeção resolva, se bem que eu deteste injeção? Não tem alternativa?

— Tem.

— Ah, então me tira daqui, já estou perfeito, faço dez flexões para você ver. Qual é essa alternativa?

— Morrer — respondeu ele, com encantadora singeleza.

Dei umas risadinhas amarelas etc. e tal, contei umas duas piadas de médico, ele me mandou calar a boca e respirar na máscara — minhas não sei das quantas de oxigenação estavam inferiores às da superfície da Lua.

— Eu não estou brincando — disse ele. — Provavelmente agora mais não, mas você podia ter dançado nessa.

Era bobagem, o que eu tinha. Arritmia cardíaca estilo crioulo doido, com o coração chegando a quase 200 batidas por minuto (acho que mais ou menos 80 seriam o normal) e depois baixando, a pressão igualmente enlouquecida, a respiração difícil. E, depois de uma diabólica sessão de tomografia, confirmação do que já se suspeitava: meu pâncreas estava se preparando para ferro-velho, meus pulmões meio infiltradinhos, meus isso, meus aquilo, tudo abaixo da crítica, uma vergonha. Dei uma rezadinha, encomendando minha alma via São Lourenço, padroeiro lá da Ilha. Então morrer era isso, interessante.

Começava assim, ia, ia, ia e aí morria. Lembrei dezenas de amigos e conhecidos mortos, principalmente os de meu tempo mesmo. Está uma porção de gente morta, inclusive muitos com bastante menos idade do que eu, por que não chegaria minha hora? Chegara, chegara.

Acabou dando que não chegara. Meteram-me em dieta zero, depois de passar-me pelo nariz uma sonda até o esôfago. Leva cerca de 20 minutos a meia hora botar a sonda. Em verdade lhes digo, vocês confessam qualquer coisa, até que mamãe foi a assassina, se tiverem que botar aquela sonda, que eu, aliás, tive de botar duas vezes, ainda bem que sou leitor do Livro de Jó. Na primeira noite, fiquei tendo sonhos pirados e sonhei com o pessoal da Casseta e Planeta, comigo no meio, se apresentando todos, inclusive eu, com sorrisos coloridos, um dentão de cada cor, cada dentão mais lindo do que o outro. Um dos meus, contudo, não estava colorido e eu resolvi substituí-lo.

Quando acordei, estava com a sonda na mão, arrancada durante o sonho em que pensei que ela era dente. Dia seguinte, botar mais uma vez — acho que já estou dispensado de meia estada no Purgatório.

Enfim, dieta zero, sonda no esôfago, jugular furada, mãos todas furadas, braços todos furados, humilhações indescritíveis, batas abertas atrás e sem nada por debaixo... E de quem terá sido a mente doentia do inventor da comadre? Há quem acerte a usar a comadre? Tenho direito a essa pergunta, na qualidade de paciente, que, durante um curto período de tratamento, usou fraldão. Por que ocultar alguma coisa, se já perdi lá toda a vergonha que me restava? É, usei fraldão. Não me dei muito bem, não tinha prática e no meu tempo era só de pano, não tinha descartável, mas usei.

Bem chega de hospital. Tive alta depois de semanas, ainda não posso fazer uma porção da coisas, outras nunca mais poderei fazer, devo uma missa a São Lourenço por ele ter segurado a barra. E não participei direito da festa eleitoral (sim, pois há um clima meio festeiro nas eleições aqui no Rio), porque não pude votar no primeiro turno. No segundo ainda deu para eu me arrastar até minha seção e votar. Votei. Agora o ano finalmente acabou, vamos ler análises profundas de como ficarão as coisas no governo de Lula, vamos elaborar belas retrospectivas e documentários e vamos cuidar logo do carnaval — quando a gente for parar para pensar, ele já está em cima.