Esperando minha vez

(João Ubaldo Ribeiro)

Sou jornalista desde os 17 anos, ou seja há quase 45. (Quando digo esse tipo de coisa, costumo ficar meio assim, porque nunca esperei fazer 45 anos de nada, nunca passaria dos 30, sempre alegres, inteligentes, sadios e namoradores, mas, agora que cheguei aqui, ainda quero mais unzinhos, mesmo que chatos, debilóides, enfermiços e enviagrados). Meu pai, que nunca foi muito democrata dentro de casa, pois acho que gastava toda a democracia dele fora, chegou um dia em casa e me mandou trocar de roupa para sair. Era para me levar a um jornal, o extinto e saudosíssimo “Jornal da Bahia”, onde eu deveria iniciar minha carreira como repórter. Naquele tempo não havia escolas de comunicação, era tudo no tapa, e eu aprendi tudo no tapa, menos diagramação, que requeria o uso de réguas, geometria rudimentar e algum senso espacial, área em que eu sempre fui classificado de cretino, inclusive por psicólogos profissionais.

Portanto, como acho que já disse aqui, sou desses jornalistas capazes de sentar a uma mesa de bar e encher a paciência alheia alegando que já fiz tudo em jornal, no que não estaria muito longe da verdade. Até comunicações internacionais eu fiz, pois sou do tempo da tesourapress, ou giletepress, que consistia em recortar notícias de outros jornais e colar em nossas laudas. Copidescava-se ou traduzia-se um bocadinho de cada matéria, de forma que tenho grande parte da imprensa carioca e paulista, atual ou defunta, em meu currículo, bem como jornais estrangeiros de prestígio.

Mas certas experiências eu nunca tive. Não me refiro a cobrir eventos como alpinismo ou outros esportes, antes não tão abundantes, chamados hoje de radicais, pois sempre tive medo de chegar à sacada de qualquer andar de edifício, quanto mais de me encarapitar em penhascos. Refiro-me a, por exemplo, suborno. Já dirigi uma redação em que todo mundo se gabava de uma tentativazinha de suborno, notadamente nas áreas de política e polícia. Eu ficava indignado, porque nunca fui objeto de uma tentativa de suborno que refletisse minha auto-assumida importância. Fiquei em dois episódios humilhantes. Um envolveu um uísque nacional chamado “King's Archer”, que na época circulava nas piores biroscas e dizia o povo que o nome (“arqueiro do rei”) era porque o consumidor bebia um gole e tomava uma imediata flechada no fígado, que recusei altivamente, com um discurso a respeito de minha probidade profissional. Se fossem pelo menos umas seis garrafas, eu ainda ficaria menos indignado, mas duas foram um rude golpe para meu ego.

A segunda tentativa foi a de um prefeito do interior, que roubou tudo o que podia e nós começamos a noticiar. Ele aí apareceu na redação para me falar. Quando eu lhe mostrei as provas, hoje provavelmente chamadas de “dossiê” e me revelei irredutível, ele me perguntou se eu tinha filhos. O quê? Não sabia o que aquilo se relacionava com nossa conversa, mas tinha, sim, tinha duas filhas. Ele piscou o olho, me chamou com um dedo para mais perto de si e me perguntou, já aos cochichos como sempre imaginei que devem ocorrer os subornos, qual a idade das duas.

“Uma tem cinco, a outra vai fazer três”, cochichei de volta.

“Um velocipedezinho e uma bola para cada uma, hem, hem?”, perguntou ele, certo de que tinha acabado de botar o jornal no bolso, e mal compreendendo que fora expulso de minha sala não tanto pela tentativa de suborno, mas pelo seu conteúdo desmoralizante. Dois velocípedes e duas bolas, francamente.

Nunca mais quiseram me subornar com nada, de forma que não posso contribuir para o folclore dos jornalistas subornados que vigora no Brasil, onde todo mundo pensa que todo mundo toma dinheiro de todo mundo, notadamente jornalistas, sempre de olho numa falcatrua qualquer. É assim que nós vivemos, segundo a opinião de vasto contingente de pessoas. Pois sim. Se eu fosse depender de subornos, nunca conseguiria manter o padrão de vida que modestamente mantenho com o que me pagam oficialmente mesmo.

De censura também minha experiência é quase nenhuma. Houve um tempo em que havia censores nas redações, geralmente senhores de ar um tanto contrafeito e expressão sisuda, especializados, ao que parecia, em “ler nas entrelinhas”. O pessoal escrevia uma nota honestíssima sobre um buraco na rua tal e ele lia nas entrelinhas e vetava a notícia. Dava um certo trabalho fechar o jornal, já que os jornais baianos não tinham, por exemplo, o peso do “Estadão” para dar trechos de “Os Lusíadas” ou receitas de bolos no lugar das notícias cortadas. Mas a mim, pessoalmente, nunca pegaram.

Mudaram os tempos, mudou o regime, foi-se a censura. Mas o mundo dá voltas e, ao que parece, a censura está querendo voltar. Por vias judiciais e, portanto, legais, mas está querendo voltar de qualquer jeito. Imagino que a exceção da verdade ainda valha (não valia, no tempo da linha dura), mas aconteceu com o “Correio Braziliense” e agora, ao que parece, acontece com o Artur Xexéo e o Mauro Rasi. Falam por aí, não sei se é verdade, que a Governadora Garotinha estabeleceu tolerância zero para críticas, gozações e assemelhados. Quando for acusação, é fácil. Mas, quando for piada ou ironia, não pode? Desta vez não fico de fora. Vou esperar o primeiro corte de cabelo ou o vestido da posse para me incluir entre os excluídos. Não se pode deter o progresso.