A gloriosa volta ao calçadão

(João Ubaldo Ribeiro)

Como o tempo voa, hem? Brincando, brincando, já estamos no quinto dia de 2003, e já devemos ter sido contemporâneos de incontáveis novidades, tais como a primeira desinfecção contra gente de que se tem notícia, realizada, segundo propósito anunciado pelo Primeiro Damo do Rio de Janeiro, dr. Garotinho, no Palácio das Laranjeiras. Claro que a ordem não terá emanado diretamente dele, pois o governador não é mais ele, mas, como sabemos, por trás de cada grande mulher há sempre um grande homem. Por conseguinte, ele terá sabido, com aquele jeitinho inocente e de quem não quer nada, costumeiro nos homens das grandes mulheres, lembrar à dra. Rosinha (para quem pense que estou tentando pirraçar a governadora, chamando-a de “dra.”, lembro que faço isso com todo mundo que é importante, seguindo a tradição de nosso povo, que me compete, como artista, ajudar a preservar; aqui, foi importante ou teve pose de importante, é logo “doutor”; só estou me guiando, como é meu dever, pela voz do povo), lembrar à dra. Rosinha, dizia eu, cuidar da desinfecção.

Uma vez, dr. Pitanga, que como eu é baiano e meu amigo há duzentos anos, almoçou lá com a gente em Itaparica e eu nem mandei desinfetar a casa, nem quebrar os pratos e jogar fora os talheres — vejam vocês o que é a ignorância de Itaparica e o progresso do Rio de Janeiro. E digo mais, ele almoçou conosco de verdade, à mesma mesa, na mesma hora, com a mesma comida, a mesma bebida, tudo, tudo, tudo. Um escândalo, aprendi agora, se bem que o dr. Garotinho tenha dito que não é nada disso, que ele só falou que ia desinfetar porque... Aliás, ele nem falou que ia desinfetar, foi tudo invenção da imprensa, é claro (no caso, escuro). E também podemos ficar sossegados quanto ao patrimônio do povo fluminense e carioca (sim, “fluminense” devia abranger “carioca”, mas todo mundo sabe que fluminense é uma coisa e carioca é outra, estão aí mesmo os resultados das eleições, que não me deixam mentir), porque a dra. Rosinha, segundo li nas folhas, disse que iria providenciar, e deve ter providenciado, um levantamento pormenorizado de tudo o que está no palácio, para ver se não está faltando nada, de obras de arte a colchas e fronhas. Nova lição, ministrada pela sabedoria dos que chegaram ao poder democraticamente. Tampouco ordenei uma vistoria em nossos bens, depois do almoço com o Pitanga. Vivendo e aprendendo.

Sim, mas isso tudo são altas questões, que só afetam os poderosos e notáveis. A mor parte (desculpem esse “mor” aí, de novo é porque sou baiano e todo baiano é negro infeccioso, cafajeste e dado a surtos de pernosticismo) de nós tem problemas mais rotineiros, como, por exemplo, os meus. Deixei de fumar à vera (já lá se vão quatro meses, mas continuo tendo ânsias de fumar, sonhando com cigarro e me achando um infeliz, além de não sentir nada do que me contam que os deixadores sentem, de se tornarem Casanovas a atravessar o Canal da Mancha no nado de peito) e deixei mais uma porção de coisas. O sujeito chega a uma certa idade e a cada vez que conversa com o médico, volta para casa com mais alguma coisa proibida, comer macarrão, ler na cama, usar cotonete, beber, assistir a jogos de seu time, ou o que seja lá que atualmente esteja fazendo mal. E também enfrentei uma tal dieta zero, que foi substituída por outra que só me deixava comer tranqüilo a maior parte das frutas (e eu nos botecos, também proibido de álcool, tomando suco de laranja, para depois os sacripantas virem me dizer que suco de laranja tem muito mais calorias do que chope; para não falar que um deles disse que eu só podia beber água — e sem gás) e bolachas água e sal, não com manteiga, mas com geléia.

Poupo-lhes os deprimentes detalhes. O facto deplorável é que já cá não me entram as calças, já cá não se me abotoam as camisolas, já não consigo calçar as peúgas e muito menos atar os borzeguins, o fardão entala na primeira tentativa de envergá-lo (chato, o pessoal da ilha adora me ver de fardão) e, de pé, só consigo enxergar os artelhos. Urgem medidas enérgicas para pôr cobro nesta situação, até porque orçamento de escritor não dá para ficar fazendo roupa nova para depois jogar fora. Claro, e levem-se em conta, naturalmente, as ameaças rosnadas pela malha médica, de diabetes, pressão alta, enfarte e outras sem as quais já nem sabemos mais viver. Sim, embora, igualmente em conseqüência da baianidade, eu seja ergófobo (dicionário, dicionário, vocês também precisam de exercício) e abomine exercícios, voltei ao calçadão.

É uma alegria. A aurora mal afasta as nuvens com seus dedos cor-de-rosa, para deixar entrever os primeiros raios fúlgidos do Astro-rei, e já estou eu bufando, admito que um pouco chocantemente, mas na privacidade de minha alcova, sem conseguir me abaixar o suficiente para enfiar a perna no short. Acabo conseguindo, depois de sentar-me e também rezar um pouco. Em breve logro assomar ao portão do prédio, respirar tão fundo quanto quarenta e seis anos de cigarros permitem, ou seja, doze mililitros por pulmão, e partir.

Eis-me de novo no calçadão. Desta vez não desistirei mais, não roubarei na contagem de tempo, não me estressarei, aprenderei as venturas de quem pode ver esse mar, esse horizonte, essas mulheres tão belas e louçãs. Sim, é isso mesmo e aproveito para perder os quilos a mais que tanto me perturbam. Paz, paz. Sim... Mas... Meu Deus, mas que camisa é esta que impudente oscila à frente? É a camisa do capenguinha! Ele também voltou! Suspiro, resigno-me à humilhação iminente, repito a mim mesmo que o calçadão é para os fortes e vou em frente. Feliz ano novo para vocês também. Sem estas cãibras, claro.