Novidades ornitológicas

(João Ubaldo Ribeiro)

Todo mundo sabe que Itaparica sempre esteve na vanguarda brasileira do pensamento e da ação, desde a ocasião em que corremos os holandeses daqui para fora debaixo de cacete, em 1648, conforme o testemunho ocular de Roxo Lírio e de Vavá Paparrão, hoje ambos finados, sendo que Vavá chegou a enfrentar pessoalmente os holandeses, na companhia de Santo Antônio, então oficial da Marinha portuguesa, se não me engano no posto de capitão. Repilo os invejosos que, na tentativa de nos empanar o brilho duramente conquistado, dizem que contemporâneos nossos, como Roxinho e Vavá, não poderiam estar presentes em ocasião tão remota no tempo. Esquecem-se esses maledicentes de que se tratava de outras encarnações e de que os holandeses não sabiam capoeira, arte de luta eximiamente dominada por Vavá e ensinada ao santo em apenas duas horas, pois santo costuma ser muito rápido no aprendizado.

Não se pode igualmente deixar de recordar que, se hoje o Brasil desfruta de independência, isso se deve à baianada, pois foi aqui, nesta venerável Baía de Todos os Santos e terras que sobre ela se debruçam, que também caímos de pau nos portugueses opressores. Qualquer historiador sabe que, enquanto o resto do Brasil estava no bem-bom, a gente aqui se encontrava esforçada em perigos e guerras, mais do que prometia a força humana. Este ano, não consegui alcançar a celebração do Sete de Janeiro, verdadeira data da Independência do Brasil, que todo ano festejamos galhardamente. Perdi, com toda a certeza, discursos monumentais, pois, como em tudo mais, o Criador foi generoso em talento verbal para com os filhos da Denodada Vila de Itaparica, título a nós conferido por desígnio expresso de Sua Majestade, o Imperador Dão Pedro I. Só a vila aqui já deu três imortais da ABL — é mole ou quer mais?

Mas não é só na área cívico-cultural que a ilha obriga a curvarem-se quantas Europas apareçam. Em qualquer fazer humano, de oratória a lançamento de tarrafa, nós somos padrão de excelência. E no resto, e quanto a nossa exuberante Natureza? Os bichos daqui são também notáveis e um dia destes eu lhes conto em pormenores a história de Princesa, a pinscher miniatura itaparicana que, na madureza vigorosa de seus 14 anos, já amamentou gerações e gerações de gatos (tudo documentado, exibo fotos a quem quiser me chamar de mentiroso), tanto assim que, até hoje, aparece um filho de leite dela e dá uma mamadinha, em intenção dos velhos tempos. E ela continua disposta a encarar novos desafios, apesar da idade avançada e de certas restrições que lhe faz a opinião pública.

Não somos nenhuma Galápagos, admitamos, mas, em relação a outros bichos, notadamente pássaros, estamos vivendo dias gloriosos. Como no que se refere aos pardais, por exemplo, espécie abominável que não existia aqui (nem no resto do Brasil, tampouco) e que chegou a ameaçar exterminar todos os outros tipos de pássaro, brigando de turma, tendo duas posturas por ano — em vez de uma, como mandam a decência e a necessidade de controle populacional — e se comportando de forma socialmente tida como inaceitável. Eles sumiram de repente. Como, ninguém sabe, mas sumiram, restando apenas um ou outro indivíduo aqui e acolá, o que só lhes faz sublinhar a decadência. Os exilados vêm voltando gradualmente e aqui a varanda já é uma festa dos passarinhos que foram prejudicados por eles. Tem até papa-capim fazendo ninho todo dia, aqui na castanheira da esquina.

Suspeito que por trás disso estejam os bem-te-vis. O bem-te-vi, como se sabe, tem uma certa propensão à truculência e seu temperamento não é dos mais democráticos. Talvez sua vocação seja a de déspota esclarecido, numa linha, digamos, hobbesiana. Acho que eles estão aprontando coisas aqui na ilha, das quais o celebrado banimento dos pardais foi apenas uma ação. Os bem-te-vis da ilha, tenho quase certeza, estão arrumando uma revolução para torná-los independentes de seus parentes continentais. (Um pardal clandestino resolveu começar seu pipilo detestável aqui no telhado de casa, agora mesmo; não se pode facilitar com eles, eles são ousados e requerem a vigilância constante de uma polícia política, vai ver ele deseja inutilizar meu lapetope e evitar a presente denúncia, mas não conseguirá: o sabiá que mora na mangueira, Vicente Celestino, chegou de uma volta nas vizinhanças e restabeleceu a ordem.)

Há evidências irretorquíveis do movimento dos bem-te-vis. Um deles é a linguagem. Ainda que de forma improvisada e empírica, anotamos variações no canto dos bem-te-vis da ilha que, certamente, seriam ininteligíveis por bem-te-vis de outras regiões. Trata-se de um dialeto cada dia mais distinto, no qual os repiques são abundantes e a repetição de certas notas é muito peculiar. Estou seguro de que, em breve, eles decretarão independência lingüística, e teremos o Pitangus sulphuratus itaparicanus, mais tarde apenas Pitangus itaparicanus, completamente distinto de seus colegas de outras áreas. Quanto à alimentação, também já começaram a inovar, mariscando nos bancos de areia abertos pelas vazantes e, comprovado por flagrante dado há uns dois dias, pescando que nem martim-pescador. É o que lhes digo: bem-te-vis pescadores! Jamais cessarão as maravilhas? Pelo visto, não, enquanto houver Itaparica, primeira e única. Não estamos vivendo dias de esperança? Pois podem esperar mais: a Denodada Vila, que aliás fechou com o presidente Lula nas últimas eleições, continua vigilante e o Brasil não tem nada a temer. Não percam novos apontamentos sensacionais, no próximo domingo.