Ecos de Momo

(João Ubaldo Ribeiro)

Começaram nossas emoções ao passarmos, no longo caminho para o camarote do Sambódromo, por soldados do Exército em uniformes de combate, guarnecendo a Praça Antero de Quental, aqui no Leblon, pertinho de casa. Só vejo soldados assim em filme americano e fiquei orgulhosíssimo, além de me sentir em completa segurança. Orgulhoso porque nossos soldados são tão garbosos quanto os americanos e ali podia perfeitamente estar um Rambo nacional, capaz de sozinho desbaratar todo o crime organizado no Rio de Janeiro. Quase desço do táxi para falar com eles e talvez pedir uns autógrafos, mas contive minha exaltação patriótica, preferindo olhá-los a distância, pois nunca se sabe o que Rambo pode fazer diante de um nordestino de aparência certamente ameaçadora, melhor admirar de longe.

E a sensação de segurança não podia ser mais confortadora. Ali estavam, afinal, as Forças Armadas, para defender os cidadãos honestos contra a onda de banditismo que assola nosso povo cordial e pacífico. Bem verdade que eu preferia um tanque ali na praça, não só porque a paisagem ficaria mais vistosa e a foto que eu tirasse não faria vergonha num jornal do famoso Primeiro Mundo, como porque em tanque não entra tiro desses fuzis moderníssimos utilizados pelos bandidos, sobre os quais todos os dias a gente ouve falar. Bem verdade que, a esta altura, pode ser que os bandidos já tenham armamento antitanque, ou até tanques mesmo, e o Exército podia ter sido orientado pelas autoridades estaduais, segundo as quais deve-se agir pouco para manter a lei e a ordem, senão os bandidos se melindram e a reação pode ser pior. Há que evitar agastar nossos bandidos, que têm sentimentos como qualquer um e muitos são um pouco temperamentais, coisa de estrelas mesmo. Limitei-me, pois, a sentir, silencioso, o coração bater mais forte, em meu peito emocionado.

Chegados ao local de concentração no qual tomaríamos o ônibus em direção ao Sambódromo, renovou-se o sentimento de segurança. Nem o táxi passava de determinado ponto, todo guarnecido de vistosos vigilantes do porte de refrigeradores de 600 litros. E, assim, protegidos, na certeza de que até mesmo as copas das árvores haviam sido vasculhadas para detectar a presença de possíveis franco-atiradores, marchamos para o embarque no ônibus. Fiquei com vergonha de perguntar se era blindado, mas a companhia jovial dos outros convidados logo nos fez esquecer quaisquer temores infundados.

Durante todo o trajeto, um pouco complicado pelas mudanças no trânsito impostas pelas circunstâncias, o que se fez foi tagarelar a respeito dos últimos acontecimentos do nosso cotidiano agora animado pelo tríduo momesco. Alguns poucos mencionaram a possibilidade de arrastões no caminho ou na chegada ao Sambódromo. Outros narraram episódios já desenrolados anteriormente, um turista roubado aqui, outro acolá, algumas pessoas baleadas, a sabedoria de se levar no bolso somente uns trocados para a volta e a cópia xerox de um documento ou outro, nada fora da rotina. Vez por outra, um frisson tomava conta do veículo, quando ele fazia uma paradinha rápida no meio do tráfego. Arrastão, seria arrastão? Não, não era, e o grupo prosseguiu alegremente, só tornando a se preocupar um pouco na hora em que, já chegando à entrada do camarote e rodando muito lentamente, alguns pedestres começaram a bater nos lados e nas janelas do ônibus. Era gente querendo ver celebridades e confesso que tive um momento de receio, já que ainda não consegui minha oportunidade numa novela da Globo e, assim, não sou popularmente reconhecido. Será que um daqueles camarote-excluídos extravasaria sua decepção, jogando uma pedra contra o vidro de minha janela? Mas, com bravura provavelmente herdada de algum ancestral de Canudos, fingi que não tinha medo, conseguimos novamente atravessar sem danos uma aglomeração de povo e entramos no camarote.

Mal posso descrever a exultação do camarote, com os amigos sorrindo em torno, a mordomia comendo solta e senhoras e senhoritas desfilando suas prendas irretocáveis para fruição dos que ainda militam no ramo e de outros, como eu, que têm algumas precárias lembranças de antigamente, quando as prendas não eram tão generosamente desvendadas ou oferecidas, mas existiam, existiam, não se enganem. Demos entrevista a granel e eu, seguramente, não envergonhei a Bahia, ao fazer elogios barrocos a tudo em redor e até mesmo a quase elogiar a safra do guaraná enlatado que a malha médica me obriga (relutantemente, porque quer proibir até o guaraná) a beber, em vez de substâncias mais carnavalescas, como nos longínquos tempos de antanho.

Enfim, uma curtição total, tudo nota dez. Não vi as escolas, porque permaneci num setor do camarote onde a tônica era a palestra erudita de meus companheiros de mesa e recebíamos informações da performance dos foliões através de olheiros que se acotovelavam nas sacadas do camarote. Somente a malha médica, melancolicamente lembrada pela minha latinha de guaraná, é que me ensombreou um pouco a alacridade natural da festa. Sim, encantadora leitora, gentil leitor, vão me pegar para me operar agora, um pouco depois do carnaval. Asseguram-me que é bobagem, duas cirurgias leves e simultâneas, que talvez não me deixem nem 48 horas no hospital. Claro, no dos outros tudo é refresco, mas não estou preocupado com as operações. Só vou querer é um pelotão do Exército para fazer a segurança do meu quarto, eis que é cada vez mais um direito do cidadão e receio que, pelo andar da carruagem, um em cada dez transeuntes, no futuro próximo, será um militar e haverá pelo menos uma metralhadora ou morteiro para cada quarteirão. Melhor só em Bagdá, é ou não é?