A esquiva realidade

(João Ubaldo Ribeiro)

Sou do tempo em que a gente estudava filosofia no curso médio. (Aliás, a cada dia me surpreendo começando alguma afirmação com um “sou do tempo”; acho que daqui a pouco serei do tempo para recolhimento a algum museu). É, mas sou desse tempo mesmo. Não tive grandes professores na área e hoje, lamentavelmente, acho que meus conhecimentos dela são apenas superiores aos que preservo de trigonometria e, considerando que não sei do que versa a trigonometria, não posso apresentar-me lá muito bem entre filósofos. Mas me lembro de aulas em que ouvíamos falar em como era problemática a aceitação de uma realidade inteiramente externa a nós. Estudávamos teoria do conhecimento e receio que a maior parte de nós acabava por concluir, aliás acertadamente, que não tinha conhecimento nenhum de realidade nenhuma.

Isso não me tem incomodado pela vida afora, porque os professores, comiserados pela nossa condição, apelavam para o senso comum e diziam que, pelo senso comum, a realidade existia como achamos que está aí. Para o gasto diário, servia, como tem servido até hoje. Dizem que o famoso dr. Samuel Johnson uma vez chutou uma pedra, para desmentir as dúvidas sobre a existência de uma realidade objetiva postuladas pelo bispo George Berkeley, mas não creio que nenhum de nós tenha chegado a esse ponto, pelo menos de propósito. Chutávamos latas mesmo e ficávamos contentes com as provas, assim obtidas, da existência de latas.

Agora, contudo, venho sentindo alguma falta de maior aplicação nos meus estudos filosóficos. A realidade tem andado muito estranha ultimamente e bem que o dr. Johnson podia aparecer (o bispo eu dispenso, já estou maluco o suficiente para ser convencido de que vivo somente imaginando coisas), para chutar umas pedras por aí. O Rio de Janeiro é o exemplo mais flagrante disso e, se fosse um pouco mais dado a especulações conspiratórias do que naturalmente sou, pediria internamento num asilo para leléus da cuca em geral (sou do tempo em que se usava a expressão “leléu da cuca”). Não estou entendendo o que se passa e imagino que outros partilharão de meu patético estado.

Por exemplo, o nosso governo local, pois existe um, a despeito de rumores em contrário, diz que a situação de violência pode estar um pouco incômoda, mas se encontra sob controle. O que a gente lê nas declarações de representantes do dito governo é que os bandidos estão acuados e é por isso que soltam bombas, metralham hotéis e edifícios e cometem outros atos que bandidos em situação normal não cometem. Ignoro o que bandidos em situação normal cometem, mas não é o que andam perpetrando, dizem as autoridades. Já se repetiu este raciocínio diversas vezes, mas, em nome da compreensão da realidade, se isto é possível, como é que bandido acuado bota para quebrar desse jeito? Eu achava, como creio que muitos de vocês também, que o acuado se retrai. “Acuar” implica isso mesmo e tem até uma etimologiazinha interessante, que não lembro agora por se tratar este de um jornal de família.

Mas aqui não, aqui é o contrário. A polícia dá duro, eles ficam acuados e aí mandam ver, de granada para cima. Está faltando armamento mais pesado, mas, com a derrota do Iraque, é bem possível que se estabeleça novo mercado comprador de armas entre nós (não se achou nada lá e talvez já esteja tudo aqui, porque os Estados Unidos disseram que havia armas lá e os Estados Unidos não mentem) e possamos levar a cabo uns lançamentos de mísseis no centro da cidade, com direito a show de abertura. Talvez nas festas de Ano Novo, quem sabe. Tentei debater essa peculiar conjuntura com várias pessoas dispostas a aceitar tudo o que assevera o governo, que também não mente, e ninguém parece compreender direito. Tem gente até achando que devem abrir logo as prisões, estabelecer horários para assaltos, conselhos comunitários de bandidagem e outras medidas para evitar a exclusão bandidal, para ver se eles dão uma folga, porque assim está difícil até ir à padaria de esquina — isso quando eles deixam, acuadíssimos como estão, as padarias abrirem.

Bem, isso na área do governo. E na área da bandidagem? Longe de mim querer ensinar bandidagem a bandido, não só porque temos alguns dos melhores bandidos do mundo e, em matéria de bandidagem, não curvamos a cabeça para ninguém, como tampouco, no meu tempo, se ensinava bandidagem na escola e sei ainda menos do assunto do que de trigonometria. Mas os bandidos — diz toda hora aqui no jornal — são traficantes. Se são traficantes, querem vender aquilo que traficam (e que, aliás, ninguém compra; só quem compra são os outros, por isso é que eles têm tanto dinheiro assim). Se querem vender o que traficam, precisam de fregueses. Por conseguinte, alguém tem que estar na cidade, para poder comprar a bagulhada deles.

Mas como, se está todo mundo indo embora ou querendo ir embora? A realidade pode ser mesmo ilusória, mas a realidade do Dr. Johnson parece indicar que os bandidos estão fazendo força para tornar a cidade inabitável e, portanto, sem mercado para eles. É isso mesmo? Deve constituir um problema trigonométrico, porque meu entendimento não o alcança, nem chega perto. Somos um país muito original mesmo. A polícia acua os bandidos, eles atiram a torto e a direito, matam policiais, incendeiam ônibus e praticam todo tipo de desordem. Os traficantes querem vender drogas e aí botam para fora da cidade os fregueses. Original, original. Enfim, como, faz pouquíssimo tempo, o Banco Central gastava zilhões para baixar o dólar e, agora que o dólar vem baixando, anda todo mundo preocupado, deve ser assim mesmo. O bispo Berkeley tinha razão e o dr. Johnson não estava com nada. Mas não vou chutar pedras por causa disso, vou é emigrar para a aprazível Costa Rica, como vários amigos meus estão planejando. Tem uns terremotos e uns vulcõezinhos, mas, para quem mora no Rio, isso é besteira, ainda mais com os bandidos acuados.