A volta triunfal

(João Ubaldo Ribeiro)

A esta altura, creio eu, está comprovado que sou um homem de decisão. Passei, por exemplo, pouco menos de 50 anos para deixar de fumar. Decidir, não, decidir foi rapidíssimo, praticamente um ou dois meses depois que já tinha começado, e era uma decisão atrás da outra, eu batia mais do que o Mike Tyson dos bons tempos. Adotar (implementar, aliás, preciso aprender urgente a falar e escrever moderno) é que já foi um pouco mais demorado. O tempo de implementação durou bastante. Eu até deixava, mas voltava logo, não valia. Uma vez, deixei por mais de um ano, mas tive desilusões, a principal das quais foi a de que não aconteceu nada do que me diziam que ia acontecer.

Como sabem todos os que fumam, porque todos os que não fumam, notadamente a malha médica, vivem lhe dizendo, fumar causa tudo de ruim que é possível conceber, desde unha encravada a calvície feminina, para não falar em histórias de mortes horrendas, das quais todo mundo tem várias no repertório. E, também como sabem, pelas mesmas fontes, todos os que fumam, o sujeito deixa de fumar e a única coisa chatinha que acontece é engordar um pouco. De resto, o cara vira uma fera atlética, dorme como um anjo, adquire fôlego suficiente para cinco minutos debaixo d’água, alcança forma física e mental suficiente para abrir uma escola de performance sexual, fica com o paladar e o olfato capacitados a transformá-lo no provador de vinho das melhores caves francesas e no melhor testador de perfumes igualmente franceses e por aí vai, é um renascimento abençoado.

Comigo, deploravelmente, não aconteceu nada disso. Fiquei um ano, até soltando umas mentirinhas para ver se ajudava a liberar as endorfinas (cheguei à conclusão de que não as tenho; paciência, ninguém é perfeito), mas não aconteceu nada, além de uma vontade de fumar horrorosa, que não havia chiclete nem adesivo que fizesse passar. Até que um dia, tomado por justa revolta, numa festa amiga, fumei uns três alheios e, no dia seguinte, recomecei meu lento retorno ao hediondo vício. Bem mais tarde, por causa de meu pâncreas, que não fuma, me internaram num hospital durante mais de vinte dias e aí eu “aproveitei” para deixar o amaldiçoado cigarro. Deixei, já vai começar o oitavo mês em que não toco mais nessa coisa imunda. Não que sinta as epifanias deslumbrantes que dizem que eu tenho de sentir, mas é que não agüento mais conferências sobre minha insensatez, nem histórias heróicas sobre como os amigos deixaram, sempre no tapa e numa decisão irrecorrível, sendo agora uns super-homens que, se cheirarem hélio, terão capacidade pulmonar suficiente para saírem voando por aí. Agora não fumo mais mesmo, embora a única modificação que sinta continue sendo uma vontade horrorosa de fumar.

Quanto ao calçadão, também sabe muita gente das decisões que já tomei de caminhar todos os dias. O recordista de decisões de parar de fumar era o Sérgio Cabral, pai, que finalmente deixou, se é que se pode dizer isso de um camarada que pita vários charutões deste tamanho por dia. Mas o recordista de decisões de andar no calçadão sou eu. Se não me engano, a sugestão sutil de um divórcio, ou pelo menos separação de corpos, foi que me fez parar de chamar minha mulher toda santa noite, durante anos, e anunciar estentoreamente que amanhã ia andar no calçadão.

E de fato andei, tenho testemunhas. Talvez tenha recomeçado a andar no calçadão mais vezes do que deixei de fumar, é páreo duro. Fiquei até conhecido em lojas de material esportivo, onde cheguei a equipar-me o suficiente para ganhar um índice qualquer para os Jogos Pan-Americanos. Mas, infelizmente — e disso nem um décimo é do conhecimento público — passei por uma série de vicissitudes que se desencorajaram com grande constância, notadamente a ação deletéria e humilhante do capenguinha que me perseguia. Acho que ele considera sua missão cumprida e está procurando novos horizontes, talvez até convocado mesmo (ele merece, justiça seja feita) para os Jogos Pan-Americanos. Nas últimas retomadas que fiz, não o vi mais, embora não faça força para vê-lo e já o tenha ignorado com altivez, deixando que o despeito e a inveja me roam por dentro sem transparecerem.

Mas não contei o dia em que me aplaudiram com irônica crueldade, num quiosque diante do qual eu havia, depois de um pique desesperado, conseguido ultrapassar uma velhota gordinha, que — humilhação das humilhações — assoviava enquanto andava e ainda agradeceu os aplausos, que, embora venenosos, eram claramente para mim e não para ela. Além disso, não segurei o pique e logo estava ouvindo de novo a assoviadinha (“A primavera” de Vivaldi, a miserável ainda é assoviadora erudita) para, junto com o ventinho do ultrapassador a que o capenguinha já tinha me acostumado, assinalar nova passagem.

E mais: fui atropelado por bicicletas indisciplinadas (sou um caminhador observador de todas as regras), xingado depois de esbarrões, empurrado para o lado e, finalmente, igualzinho ao cigarro, nunca senti nada de fantástico depois do exercício, só perna doendo mesmo. Isso, contudo, não me demoverá. Quem for lá amanhã me verá, com o garbo que não me abandona, lutando para assumir meu lugar de direito no panteão do calçadão. Aliás, pensando bem, amanhã, não. Dentro de uns dias vou viajar e não poderei estar lá. Melhor não desiludir ninguém e prometer que volto somente em outra segunda-feira, é mais realista, aí fica tudo certo. Pode esperar, eu sou um que aparece uns dez segundos atrás da ponta da barriga, usando um bonezinho azul, olhando furtivamente para os lados e tendo um sobressalto toda vez que ouve alguém assoviando “A primavera”.