Estamos todos loucos

(João Ubaldo Ribeiro)

Não sei o que é isso, mas todo mundo gosta, ou aparentemente gosta, de notícias de viagens. Antigamente, quando viajar era muito raro e difícil, os livros de viagens faziam grande sucesso e o viajante escritor, desde o patrono Marco Polo, podia contar suas lorotinhas e caprichar em paz nas descrições fantasiosas de outros povos e animais exóticos. O português Fernão Mendes Pinto continua esplêndido com as historinhas de suas viagens, assim como diversos outros, hoje transformados em ficcionistas. Eu mesmo ainda sou do tempo em que, apesar de o Galeão ser pouco mais que um galpão, as mulheres chiques viajavam de chapéu, passeando para lá e para cá e se abanando altaneiramente com os passaportes.

Hoje não, hoje eu ouço aqui no Leblon papos sobre “você voltou de lá quando?”, envolvendo o pulinho a Nova York que agora todo mundo dá. Perdeu a graça e até presente é difícil trazer, porque tudo o que tem em toda parte tem aqui, com a possível exceção, diriam os mais céticos, de vergonha na cara. O que interessa mesmo trazer, como um computador decente a um preço inferior ao de um Cadillac, não deixam, de forma que a maior parte se entope de caixas de uísque no free shop mesmo e só mente um bocadinho a respeito da qualidade do hotel em que se hospedou e outras coisinhas humanas, demasiadamente humanas.

Mesmo assim, ainda se pedem notícias de viagens. Eu próprio viajei, como sabem todos os que lêem o que sai aqui. Fui, fiquei, voltei, não achei nada para contar. Minto, até achei, mas não vi tentação em contar, fiquei com pena. É o que está acontecendo com as companhias de viagem. Não tem mais nem aquela bolsinha, que já teve em todas as classes, com escova, pasta de dentes e outros bagulhitos. Na classe executiva, ainda sai um uisquezinho, mas acho que, na econômica, adeus. Enfim, leio aqui na internet que uma companhia de aviação economizou centenas de milhares de dólares por ano eliminando uma azeitona por salada servida. Coitadas, estão indigentes e, conforme nos ensinaram na escola, não se deve zombar de quem caiu em desgraça.

De resto, novidade nenhuma, ainda mais que fui à Suíça e dei somente uma passadinha rápida por Milão. Ninguém espera novidades da Suíça. Aliás, os cariocas esperam, mas, pelo jeito, essas não vão sair assim tão cedo. Que novidades haverá na Suíça? Um escândalo porque o relógio de um campanário atrasou três segundos em uma semana? O processo que uma senhora está movendo contra seu vizinho de cima, porque ele dá descarga no banheiro depois das dez horas da noite? Não, não se espera nenhuma novidade e o bom é isso mesmo, aliás. Mas me pedem novidades, querem ouvir relatos sobre outras passagens da vida glamourosa do escritor, falando sobre a Amazônia a uma platéia de universitários discretamente obrigada a comparecer. Mas não lhes contarei mais uma vez tudo o que consegui inventar sobre índios e correlatos.

A novidade, para os brasileiros, é uma coisa que acontece não somente na Suíça, mas em países civilizados, com baixos, ou baixíssimos, índices de violência e desigualdade escandalosa. É a estranha tranqüilidade da população. Nós já não notamos como estamos todos loucos, assim como os peixes não devem notar que estão dentro da água. Já vivemos imersos nesse clima de maluquice, insegurança e absurdos por todos os lados, que nem mais nos damos conta. Aqui, pairam sobre nossas cabeças, em diversos níveis, medos de todos os tipos, desde o de doenças esdrúxulas ou já eliminadas em outros países até o de que apareça um governo que tome de todos o dinheiro guardado. Acredita-se em tudo de maluco em que se fala e o mundo é uma torquês, nos apertando há tanto tempo, que já ficamos dormentes e achando que tudo é visto através da grades. Na porta de casa somos assassinados; na escola, não conseguimos ensinar a ler; bancos lucrativos não pagam Imposto de Renda; ricos tampouco; só ladrão de galinha vai preso de fato; traficantes decretam feriados, fecham ruas, atacam até quartéis do Exército; todo mundo tem medo da polícia, menos os bandidos; todo mundo desconfia de tudo; tudo o que é criado ou instituído vira logo objeto de uma fraude ou formação de quadrilhas. E assim por diante. Se pobre pudesse comprar tranqüilizante, seríamos os maiores consumidores do mundo, de longe, se já não somos assim mesmo.

Muita gente não consegue perceber o que é diferente no exterior. Apenas, quando o carro de alguém que ia passar pela rua pára para que atravessemos, sem sinal ou qualquer outra coação pública e espera sem buzinar, fazemos uma comparação superficial com o que acontece no Rio de Janeiro, no instante em que o ônibus parado para atravessarmos no sinal acelera em ponto morto, só para dar um sustozinho no pessoal, e aí dizemos que nosso povo não tem educação. É verdade, mas a razão principal não é essa, é que viramos um bando de malucos mesmo. Da próxima vez em que vocês viajarem para fora, procurem observar essa tranqüilidade invisível, mas quase palpável.

Aí, o que posso contar de novidades da viagem? Nada mesmo, a não ser que também lá há loucuras, mas bastante mais amenas. Como, por exemplo, a tarde que passei com meu amigo Massimo, no Piemonte (onde, por sinal, graças a Deus, não existe arroz à piemontesa e ninguém o ameaça com ele), na vinícola e adega dele, bochechando vinho e cuspindo tudo num vaso de porcelana destinado exclusivamente a esse fim. Que é, pois, que eu fiz na Suíça (a bem dizer, Itália, mais que Suíça), em matéria de diversão? Algumas coisinhas, mas principalmente cheirar e bochechar vinhos extraordinários, de vez em quando dando uma engolidinha, mas só de vez em quando — é como tragar charuto, não precisa. Lá fora, o lago, as montanhas, a floresta — e uma brisazinha amável. Esses suíços são uns loucos, nem arrastão eles têm. E passam uma tarde toda filosofando e cuspindo com os amigos, sem nem uma bala perdida para distrair.