Mudando de assunto

(João Ubaldo Ribeiro)

Estava eu posto em desassossego, na sala de espera de um dos estimadíssimos membros da malha médica que continua a envolver-me e que, segundo tudo indica, jamais doravante me abandonará (só tomo nove pílulas diferentes no café da manhã e, de acordo com alguns, ainda me encontro na fase amadora), quando uma senhora de ar distinto me reconheceu e me dirigiu a palavra. Com um certo alívio, porque já me causavam estresse as emoções da leitura de um exemplar da revista Caras que descrevia o drama do velho amor e a alegria do novo amor da Adriane Galisteu — eis que parece ser esse o tema de oito em cada dez números dessa prestigiosa publicação e todas as oito eram as únicas que estavam à disposição — prestei atenção solícita no que ela começava a me dizer.

— O senhor — falou ela, hesitando um pouco em prosseguir, mas estimulada pelo meu ar pateticamente sôfrego — não é o João Ubaldo Vieira?

Acostumado a ser João Paulo de Oliveira, encarei o ingresso na família Vieira até como um certo progresso, e a corrigi apenas por não ter mais o que dizer. Era, sim, era eu, só que Ribeiro, mas, se ela fizesse questão, seria Vieira, sou homem de bom acomodar.

— Ah, que alegria conhecer o senhor — continuou ela. — O senhor não sabe como me faz bem, como me faz tanto bem ler suas crônicas no jornal. Eu não perco, só compro o jornal do domingo por causa delas.

— Escreva para a direção e diga isso — pensei em responder, mas não o fiz, pois até para manter o emprego é necessário um certo decoro. Apenas agradeci com um sorriso. Era muita gentileza dela, eu ficava lisonjeado com aquilo e esperava não decepcioná-la no futuro.

— Pois é — disse ela. — O resto do jornal só tem coisas horrorosas, mortes, balas perdidas, atentados, guerras, doenças novas, a gente não agüenta mais. Aí é um alívio encontrar suas crônicas, sempre leves, engraçadas, tirando a cabeça da gente desses acontecimentos terríveis. Eu sei que tudo é verdade, mas é bom encontrar um lugarzinho onde se fale em outra coisa. O senhor não deve nunca parar, deve sempre escrever assim, o senhor é um oásis.

Nunca me chamaram antes de oásis e, com orgulho, acrescentei a designação à minha modesta galeria de títulos. Agradeci outra vez e continuaríamos a conversar, se logo em seguida eu não tivesse sido chamado para encarar o colesterol e os triglicerídios, aquele melhorzinho, estes piorzinhos, não havendo maior perigo, se eu riscasse da minha lista mais alguns alimentos, terminando por reduzir minha dieta a peixinho grelhado e capins selecionados. Sem esquecer de diminuir o sal tanto quanto fosse possível, pois a pressão arterial não se apresentava em forma muito elogiável.

Com mais um remediozinho bobo acrescentado a meu elenco, voltei para casa, a fim de sentar-me diante deste teclado e cumprir minha obrigação semanal. Sim, que dizem as folhas, que mostram os noticiários de tevê? Tumultos nos postos do INSS. A explosão em Alcântara. A reforma tributária sendo xingada e desqualificada de todos os lados. Crise no Instituto Nacional de Câncer. Atentados terroristas, mais mortes no Oriente Médio. Escolas sem professores, alunos completando o ensino básico sem saber ler. Anúncio da iminência de um tremendo vírus de computador novo, capaz de fazer mais misérias que todos os outros juntos. Um padre americano, condenado por pedofilia, assassinado com requintes de crueldade dentro da cadeia. Um cidadão detido por tentar estuprar uma cadela (sic) chamada Tiazinha, que, segundo ele — juro a vocês, não posso ser o único a ler essas coisas — o provocava com meneios e requebros lascivos, para grande indignação de sua dona e perplexidade da autoridade policial, que não sabia como enquadrar penalmente estupro de cadelas. E, finalmente, uma notícia baiana — logo baiana, Deus do céu — sobre um avô abusando sexualmente de seu neto de um ano e oito meses.

Não, era demais mesmo. Não escreveria sobre aquilo, não decepcionaria minha preciosa leitura, não abandonaria minha condição de oásis. Mas como justificar ou ignorar esses assuntos, que, afinal, estão na ordem do dia? Simples, não justificando, bastava-me resolver continuar oásis. Mais fácil de dizer do que de fazer, naturalmente, mas aí os médicos, benditos sejam eles, vieram em meu socorro. Não sei onde, não sei mais se nos Estados Unidos ou na Europa, concluíram um estudo que prova que os atletas, mais especificamente os jogadores de futebol, não devem fazer sexo nos dias anteriores a uma competição, porque sua performance esportiva decai visivelmente.

Pronto, estava ali um assunto palpitante, que pode ser tratado com leveza. Nós, oásis da imprensa, somos capazes de tudo para preservar a reputação. O Romário, naturalmente, foi ouvido e, ainda mais naturalmente, discordou. Nada disso, afirmou ele, fazer sexo antes do jogo é até benéfico, ele podia garantir. Mas, digamos, a opinião do Romário, conforme o que fofocam dele, é um pouco prejudicada. Os médicos devem ter razão e imaginei que, no futuro, teremos combativas equipes de donzelões, liderando todos os campeonatos. Mas, se a coisa se estender? Se as empresas aplicarem essa idéia a seus empregados e passarem a fiscalizar o comportamento sexual deles, como muitas já fazem em relação a álcool, fumo e outras drogas? Viveremos então numa sociedade completamente vigiada em suas ações mais íntimas e, até para ir para a cama com a própria esposa, o sujeito terá de apresentar autorização da empresa e fazer um relatório posterior? Não, não, nem este assunto pode ser visto com amenidade, pensando bem. Desculpe, querida leitora, não foi possível desta feita, os tempos andam muito bicudos. Mas não se incomode, não, que vou procurar saber dos novos amores de nossos astros e estrelas e tratar deles no futuro. Oásis sou e oásis sempre serei.