A pátria amada

(João Ubaldo Ribeiro)

Hoje, por ser domingo e não se trabalhar de qualquer jeito, creio que pouca gente vai lembrar que é o Sete de Setembro, antigamente muito chamado, mas hoje pouco, de Dia da Pátria. Recebo cartas e sugestões de amigos e leitores, parecem que esperam de mim uma crônica ou artigo de grande impacto e veemência, em nome do aniversário, ainda que contestado por alguns, do nosso país, ou “desse país”, como gosta ou gostava de dizer o presidente Lula. Há até quem espere que eu exponha dados, que por sinal não tenho, sobre a sugestão de que há e sempre houve sabotagem de fora no programa espacial brasileiro e aclare tudo de forma definitiva, como prova de que precisamos cada vez mais de união, porque o Brasil tem inimigos por toda parte. Há mesmo quem ache que, neste espaço, eu posso resumir análise e opinião abrangentes sobre nossos problemas e nosso futuro.

Mas, ai de mim, não vou fazer, para usar um adjetivo adequado ao dia, nada de retumbante. Não sei como fazer, não só porque me falta capacidade, mas porque meus sentimentos, como os de muitos de nós, são contraditórios. Até hoje sou do tipo que chora, ao ouvir o Hino Nacional em momentos especiais. Quando ia a Copas do Mundo, agüentava sem chorar, se não cantasse. Mas, se cantasse, não conseguia terminar, com a voz falhando e os olhos embaçados por lágrimas. Ao mesmo tempo, porém, aprendi a usar, talvez como tática de sobrevivência, o que, suspeito eu, também muitos de nós usamos. Uma certa atitude blasée, um certo cinismo resignado e auto-irônico. É isso mesmo, somos assim, do jeito que sempre fomos, nascemos para ser assim, o melhor é conviver com aquilo de que já cansamos de nos queixar, carma é carma, vamos sempre ficar na rabeira dos países um pouco mais desenvolvidos, perdemos o sonho, hoje tão fora da moda, de grande potência.

Ainda peguei na escola o tempo do ufanismo, o tempo em que se liam com entusiasmo livros como “O Brasil e suas riquezas”, de Waldomiro Potsch (espero estar escrevendo o nome dele corretamente, meu exemplar já se perdeu na poeira de tantas mudanças), o tempo em que nossa História era povoada de heróis e o nosso destino inelutável era a grandeza. Professores e textos eloqüentes nos faziam vibrar de emoção cívica, aprendíamos a detestar o opressor lusitano dos tempos coloniais, ouvíamos quase com febre as histórias de Tiradentes, da Batalha de Guararapes, da guerra contra o abominável tirano paraguaio Solano López, parecíamos todos ter um pouco de Policarpo Quaresma em nossa formação. Bem verdade que havia aqueles que achavam que, se os holandeses não tivessem sido expulsos de Pernambuco e da Bahia, estaríamos hoje em bem melhor situação, assim como se tivéssemos sido colonizados pelos franceses do tempo da França Antártica.

Mas é tudo passado, tudo gasto, e a História vista na base do “se isso ou aquilo tivesse acontecido” não passa de um exercício de imaginação ociosa, pois estamos diante do que é. Neste mundo enlouquecido em que passamos a viver, não sabemos nem se ainda seremos o mesmo país daqui a um par de décadas ou mesmo somente alguns anos. O conceito de soberania se esfuma a cada dia, estamos sujeitos a tudo, sob o reinado de Bush II e seus sátrapas, como Tony Blair. A Amazônia, fala-se muito por aí, deixará em grande parte de ser nossa. Já estaria deixando, e há quem ache que será melhor assim, pois, afinal, não soubemos nem ocupar racionalmente esse território. Contam-me que há lugares por lá onde os índios só falam sua língua e inglês, desconhecendo completamente o português. Dizem-me também que há outros lugares onde brasileiro não pode entrar, não sei se é verdade.

Só sei do que vejo e leio, botando fé nos autores. Sei que este território de dinossauro que a colonização portuguesa e alguns eventos posteriores conseguiram prodigiosamente preservar como um só Estado, enquanto a América espanhola se esfacelou em muitos outros, talvez agora não venha mais a ser mantido. O cinismo a que aludi me chama a acreditar em qualquer coisa — acho até que estou escrevendo sobre isso (ainda não sei; às vezes, acontece, pelo menos comigo, o escritor começar um livro sem saber realmente o que está fazendo). Um Brasil do Norte e um Brasil do Sul? Por que não? A geopolítica hoje dá pulos de assustar, e não há razão para crer que o que sobreveio a outros Estados e nações não sobrevenha a nós. Territórios hoje reservados aos índios transformados, em nome da autodeterminação dos povos e baseados em plebiscitos, em Estados independentes, sob a tutela dos donos do mundo? Também por que não? Vários Brasis, por que não? Um do Sul, composto pelos atuais gaúchos, paranaenses e catarinenses, um do Sudeste com a adição da Bahia e assim por diante. Falo na adição da Bahia ao Sudeste por causa das semelhanças de espírito entre baianos e cariocas e pelo que de interessante se vislumbra, ao conceber a criação de um país com vocação turística e festeira, foliando alegremente entre celebrações diárias, a baianada e a cariocada se esbaldando e tomando uma graninha dos gringos, entre desfiles de escolas de samba e trios elétricos, farras para todos os gostos, cassinos, mulherio irretocável, um paraíso sibarita. São Paulo, embora possivelmente pudesse sobreviver sozinho, talvez se juntasse ao Sul, como líder industrial e financeiro. É um nunca-acabar de hipóteses, todas, repito, com algum grau de plausibilidade.

Sim, caros concidadãos, hoje é o Dia da Pátria. Vamos vivê-lo enquanto ele ainda faz algum sentido, embora pouca gente de fato comemore, talvez com razão, a julgar pela constante derrota da esperança que a miséria, a corrupção, o desemprego e a injustiça vivem lhe infligindo. É, misturemos então a combalida esperança com uma dose realista de resignação e espírito esportivo, o que lá seja isso. Até porque hoje, em todos os botecos “desse país”, lembrar-se-á com alegria que, no ano que vem, o Sete de Setembro será feriadão.