Quem está aí?

(João Ubaldo Ribeiro)

Em uma coisa a maioria das pessoas com quem converso concorda: o presidente Lula continua cada vez mais simpático, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida senão presidenciar. Num momento está jogando futebol, como o peladeiro que quase todos os brasileiros foram ou são — e com pinta de meio ruim de bola, como também a maior parte dos outros peladeiros. Em outro momento, recebe visitantes com informalidade e alegria, enfia bonés na cabeça (um deles meio controvertido, mas já passou), finge que toca violino, quase faz ginástica olímpica, sai circulando com uma câmara na mão e, embora haja quem ache (eu não) que ele não tem a correspondente idéia na cabeça, se mostra uma figura boa-praça, amigueira, bonachona, que abraça todo mundo e tem palavras de amizade e estímulo para quem aparecer. Além disso, não faz vergonha no exterior, antes pelo contrário. Não discursa colonizadamente em várias línguas e não tem o ar meio rabo-entre-as-pernas que brasileiros cultos por vezes assumem, diante de representantes de países avançados.

Enfim, está bem à vontade no papel para que foi eleito. Se tudo se resumisse a isso, seria ótimo. Mas o problema é que governar não se limita a essas exterioridades, e a verdade é que nós, brasileiros, temos razão para estar meio confusos. Não me refiro à postura que o governo toma, tão longe do anterior na retórica e tão próximo na prática. A isso estamos nos acostumando e até acho que têm razão os que ponderam que não só não houve ainda tempo para mudanças efetivas, como o governo não triunfou numa revolução, mas num quadro com regras de jogo antes definidas e com responsabilidades de que não pode abdicar com gestos ou atos intempestivos. Não há como sair reinventando tudo e modificando o país a canetadas, por mais vigorosas que sejam — e não seriam tanto assim, o buraco é sempre mais embaixo.

Mas, diante do noticiário com que nos deparamos todos os dias, fica justificada, pelo menos para as mentes mais simples como a minha, uma certa perplexidade sobre o que está realmente acontecendo. Quem está mandando mesmo, qual é a posição oficial, o que é que o governo diz sobre os assuntos do dia? Aí, a sensação de confusão, pelo menos no meu caso e de vários companheiros de barco, é inevitável e a culpa, vamos fazer justiça, não é nossa. Os governados, ainda mais os governados de tradição ovina, como nós, se habituaram à idéia de que alguém está cuidando das coisas. Já elegemos os dirigentes supostamente mais importantes, estes já nomearam outros e tudo deve estar sendo conduzido mais ou menos dentro do previsto. Mas a verdade é que o noticiário leva a que terminemos com a impressão de que a existência de um governo de posturas bem definidas deve ser vista com sérias dúvidas. Quem lê um jornal diário, a depender das matérias que escolha, está num país diferente do de quem leu o mesmo jornal, só que em páginas diversas. Aqui, diante de mim, estão notícias retumbantes sobre nossa performance no famoso mercado, entusiasmo nas bolsas de valores, exportações em alta, tudo róseo. Ou então tudo escuro como num buraco negro, as tarifas públicas aumentando, outros custos baixando e nunca — pois sempre há uma razão técnica ininteligível para isso — essas baixas sendo repassadas para o consumidor final, escolas sem professores, hospitais sem dinheiro, repartições tendo até a luz cortada por falta de pagamento, enfim, o Brasil de sempre, que teima em continuar presente, não importa quanto queiramos deixá-lo no passado.

E o que percebemos não aclara a confusão, antes a intensifica. Dentro do governo, parece que cada um tem seu próprio programa e vê sua influência desafiada a todo instante, porque, volta e meia, aparece alguém importante lá de cima para deixar claro que quem manda nisso ou naquilo é ele. Estranho, um governo em que seus componentes vivem batendo boca em público, cada qual defendendo um ponto de vista, para, às vezes, como na situação de técnico de um time de futebol em que cada um chuta para um lado, o presidente ter de chamar seus presumidos comandados e mandar que eles pelo menos parem de brigar em público, pois o mínimo que se espera de um governo, até mesmo de um mau governo (não estou dizendo que temos um mau governo, estou somente começando a desconfiar), é um pouco de coerência.

As querelas por todos os outros lados do governo, que, afinal, não é somente o Executivo, dão também sua forte parcela de contribuição. Impopular, com má imagem pública, por mais que não queira ou mesmo não mereça, o Judiciário contra-espinafra o Executivo e dá medo de que, com mais uns empurrões, a canoa vire e ninguém acerte a desvirá-la. Chegamos ao ponto em que emprestamos ao Judiciário (ou seja, um dos poderes do nosso governo) a condição de casa da mãe Joana, com a iminência de inspeções pela ONU, como adolescentes conflituados que não conseguem resolver seus problemas sem tutela. E o Judiciário não contribui em nada para arregimentar corações e mentes no instante, por exemplo, em que um graduado representante seu vem revelar que a Constituição vigente tem artigos que não foram votados e que um desses artigos ele só diz qual é depois.

Vamos admitir, é doloroso, mas vamos admitir, pois, se houvesse espaço, este inventário de trapalhadas se prolongaria indefinidamente que a sensação — perdão, senhoras — de esculhambação é inescapável. E, com essa sensação, vem outra: a de que, no frigir dos ovos, quem vai ser esfolado seremos nós mesmos, como sempre. Por exemplo, para aliviar a carga dos que ganham menos e da classe média assalariada, era promessa do governo, antes da posse, corrigir a tabela do Imposto de Renda. Pois sim. E o pior é que, quanto a isso e muitas outras coisas, não sabemos a quem perguntar ou quem é que realmente manda (lembrar a comédia da assinatura da MP da soja transgênica). Somente uma coisa é certa: ao contrário do que diz uma Constituição que nossos constituintes nem votaram toda, não somos nós.

Afinal, quem está mandando? O que diz o governo sobre os assuntos do dia?