Um certo pânico, uma certa histeria

(João Ubaldo Ribeiro)

Os denodados que lêem esta coluna com regularidade talvez se lembrem do dia em que contei como já me chamaram de um dos "oásis" do jornalismo, porque sempre se espera ver neste espaço alguma coisa amena ou bem-humorada, em contraste com as notícias e comentários alarmantes que se encontram em todos os jornais. Devo certamente ter feito jus a essa avaliação, mas manter a condição de oásis, como também já observei, vem se tornando cada vez mais difícil. Nós, oásis, estamos abarbando tempos bicudos e receio que, em breve, poderemos ser tidos na conta de gaiatos irresponsáveis, querendo dar risada, nos tempos nada hilariantes que atravessamos.

Bem verdade que, em nossa defesa, existe o argumento de que, ao contrário do que talvez se pense, escrever e denunciar surtem bem pouco efeito. Longe vão os dias em que, jovem escritor e jornalista com os projetos mirabolantes naturais das ilusões da mocidade, eu não só ia exercer impactos definitivos na sociedade, como levaria, com a ajuda de quem achava de si o mesmo que eu de mim, a mudar quase tudo o que julgava errado, injusto ou iníquo. Ilusões perdidas, claro. Escrever, encantadora leitora, gentil leitor, não muda coisa nenhuma, é o que indica a experiência de décadas, não só a minha, como a que comprovo nos outros. Se mudasse, pelo menos algo já deveria ter melhorado, em tudo o que nos circunda, cada vez mais assustadoramente. Já perdi, de muito longe, a conta do que se pretendeu mudar pela denúncia ou combate, sem a menor repercussão.

Mas ser oásis tem limites humanos e a verdade, como também já disse antes, é que, sem querer nem poder cuspir no prato em que como, ninguém com alguma sensibilidade pode conservar-se imune ao bombardeio de informações tenebrosas com que os jornais, cumprindo sua missão de noticiar e opinar, nos soterram todos os dias, a ponto de hoje vivermos em permanente estado de pânico e histeria. Arrisco a hipótese de que a maioria de nós, para conseguir sobreviver com um mínimo de sanidade e equilíbrio, acaba se anestesiando de alguma forma, para não enxergar mais o absurdo dos acontecimentos e atos que nos cercam. O mundo passa a ser assim mesmo e achamos que a vida é e tem de ser assim mesmo.

Contudo, a vida não é assim mesmo, ou podia não ser assim mesmo. Que lemos e ouvimos na semana passada? Vimos, por exemplo, uma horda terrificante tomar praias de assalto e dar a impressão de que, a qualquer momento, tudo pode ficar absolutamente fora de controle e a desordem absoluta é capaz de instalar-se de repente, sem que nada possa opor-se a ela. As autoridades chegaram ao ponto grotesco de, mesmo perante evidências inequívocas e o testemunho de milhares de pessoas, negar o que ocorreu. Não houve arrastão, disseram. Como não houve, se tantos foram roubados e agredidos de roldão, se vimos fotos de gente apanhando diante de semelhantes que não se mexeram para ajudar as vítimas? Quem estamos tentando enganar? Como conseguir afetar normalidade, sabendo que não há segurança em lugar nenhum, nem fora nem dentro de casa? Como não viver na permanente iminência de um pesadelo que pode abater-se sobre qualquer um de nós?

E não são problemas, todo mundo está cansado de saber, apenas de segurança, no sentido estrito do termo. Não há para onde olhar, sem um arrepio. A semana abriu com as novas de que nem a famosa classe média consegue mais comer direito ou mesmo razoavelmente, porque nos dizem que a inflação está dominada, mas vemos que os salários perdem a cada dia seu valor, ou somem no desemprego. E os preços e tarifas sobem o tempo todo, no meio de uma mixórdia de índices contraditórios e incompreensíveis e pronunciamentos disparatadamente otimistas. O fato é que tudo custa mais caro hoje do que custava ontem e não comer carne e feijão, por exemplo, deixa de constituir uma opção para ser uma atitude forçada pelas circunstâncias. Talvez eu esteja exagerando, embora compreensivelmente, mas às vezes a percepção é de que o programa Fome Zero, sobre o qual ainda não encontrei ninguém que tenha inteiro entendimento, surgiu não para estender a nutrição a todos, mas a subnutrição, sem distinção de classe (a não ser a dos ricos, que, mesmo assim, vive suas próprias assombrações, entre o temor de uma súbita sublevação geral e a contratação secreta de seguros anti-seqüestro), raça, credo ou região.

A saúde pública, em meio a acusações de violação de preceitos constitucionais, prática aliás corriqueira em nossa História, está visivelmente em processo galopante de sucateamento, para não falar no estado dos poucos que podem pagar, entre planos de saúde leoninos e a diminuição dramática de leitos hospitalares na rede privada. Em São Paulo principalmente por falta de chuvas e planejamento e, no Rio, por poluição e desperdício, o racionamento de água é tido como quase inevitável. A reforma tributária, que também ninguém entende, aprimora facadas em quem já não pode pagar e privilégios para quem já os tem de sobra. A situação no campo volta e meia aparenta estar chegando — e talvez somente por sorte ainda não tenha chegado — a um estágio em que uma tragédia de grandes proporções pode advir, trazendo com ela uma sucessão de outras, talvez um caos de duração imprevisível.

Sim, perdão, leitores, mas até os oásis da imprensa só podem tender a desaparecer perante esse quadro, do qual, como vocês bem sabem, apenas fiz um esboço muitíssimo incompleto. Não muda nada, mas reclamar é preciso. E também é preciso que cessemos de ser carneiros e reconheçamos que todos, de uma maneira ou de outra, até por pretender ignorar o que está diante dos nossos narizes, ao menos enquanto não parece afetar-nos diretamente, somos responsáveis e, para reiterar o que muito se diz da boca para fora, merecemos o destino que amargamos.