A cortina de baygon

(João Ubaldo Ribeiro)

Vou tratar de um assunto que costuma me levar a fazer ressalvas antes de abordá-lo. Não por puxa-saquismo ou algum interesse oculto, mas porque há sempre alguém que pouco me lê ou nunca leu antes e pode atribuir minhas opiniões a uma postura que está bem longe da minha. Seria um antiamericanismo visceral, ódio aos Estados Unidos ou, pior ainda, a seu povo, o que, logicamente, tornaria minhas opiniões suspeitas ou gravemente prejudicadas. Falo inglês desde pequeno, quase como segunda língua (brinquei na infância com meninos americanos, meus vizinhos, filhos de funcionários de empresas contratadas pela Petrobras, na Bahia), já morei nos Estados Unidos um par de vezes, estudei lá, conheço razoavelmente sua história e sua cultura, reconheço a importância de sua civilização e das grandes conquistas científico-tecnológicas que beneficiaram a Humanidade, sou admirador da Revolução Americana e dos grandes Pais da Pátria com que o país contou em sua formação, mantenho amigos por lá, meu primeiro livro publicado no estrangeiro saiu lá e até a primeira grande cidade que conheci, antes mesmo do Rio ou de São Paulo, foi Nova York, no fim da década de 50. Pensando bem, este resumidíssimo currículo americano meu poderia até me conferir suspeição contrária à de que me defendo, ou seja, a de que, no fundo, sou é um americanófilo.

Não sou nem uma coisa nem outra e não acredito em preconceitos contra povos, como, aliás, me oponho a preconceitos em geral. Mas é que hoje me deu na telha o que pode parecer apenas falar mal dos Estados Unidos. E é falar mal mesmo, mas da situação criada pela política externa arrogante, presunçosa e desastrada praticada pelo governo Bush. Claro que simplifico algo que renderia longos ensaios, mas isto acontece a quem escreve em jornal. E o jeito é reafirmar o que já disse algumas vezes, não só sobre o mundo que essa política (que, aliás, tem — só pode ter — raízes anteriores à administração Bush e que apenas representa seu ápice, ou seu nadir, conforme o observador) nos está legando, desde a tragédia das torres até a invasão do Iraque, a qual, como todos lembram, era para ser um passeio. Na ocasião, estive entre aqueles, inclusive americanos, que tinham certeza de que já havíamos assistido a esse filme e que a guerra mal começara, com a "vitória" na batalha de Bagdá.

Sou forçado, por questão de espaço, a limitar-me hoje à política de segurança quanto a estrangeiros, refletindo o clima de crescente medo que invade a sociedade americana, a ponto de não só forasteiros virem sofrendo, mas até eles próprios, como um menino no aeroporto de Norfolk, na Virgínia, que portava um cachorro de brinquedo capaz da gracinha de soltar puns quando acionado (algum de vocês deve ter lido sobre isso nos jornais, não é possível que somente eu leia essas coisas) e que foi tido como explosivo, fazendo o garoto sofrer interrogatório do FBI e perder o vôo. Brinquedos inofensivos metem medo e, gradualmente, acho que absolutamente tudo vai meter medo.

Nós, exóticos lombrosianos, também metemos medo. Bem verdade que os americanos sempre pareceram convictos de que todo mundo quer morar naquele paraíso deles, o que, se é fato para muita gente, é falso para a maior parte. Mas a coisa piorou muito. O visto de entrada, caro, difícil, e até humilhante, será complicado com o fichamento quase criminal de estrangeiros, que terão de tirar impressões digitais, fotos e coisas assim, não só para entrar como para sair. Até fazer uma brevíssima escala técnica nos Estados Unidos requer visto, e sua ausência pode redundar em tratamento inconcebível para um país que com razão se gabava de suas hoje minguantes liberdades públicas. Isso para os visitantes como nós, considerados inferiores, perigosos ou delinqüentes natos, ou tudo isso junto, porque os europeus não estarão sujeitos a tais exigências.

Um diplomata brasileiro, como também se sabe, passou pelo vexame de ter de tirar os sapatos em vários aeroportos americanos. Eu, que não sou diplomata, sei o que é isso, porque, por exemplo, em viagem rápida, a convite do Kennedy Center com a participação do jornal "Washington Post", fui vítima de minha cara, em trânsito por Atlanta, e me retiraram do meio dos outros passageiros numa fila de embarque para me revistarem na frente de todo mundo (nos sapatos nem se fala e felizmente minhas meias não estavam furadas, não envergonhei o Brasil), além de ser cheirado de forma meio indecorosa por um bigle caluniosamente chamado Snoopy. Alguns amigos meus, com filhos ou parentes nos Estados Unidos, não podem mais visitá-los. E fazer turismo por lá requer uma determinação que devasta a paciência de qualquer um.

Sim, é conseqüência dos fatos, talvez realmente não haja condição de se agir de outra forma. Eles estão se protegendo do que eles mesmos provocaram, através de décadas de miopia, incompetência e insensibilidade pelo mundo que dominam afora. Acabou o espaço — e eu ainda ia falar nos prisioneiros de Guantánamo, não só os afeganes, como os feitos na invasão de Granada, estes encarcerados há anos e anos, sem os direitos garantidos pelas próprias leis americanas e por convenções internacionais, assim como quem tem a infelicidade de ser pegado com uma irregularidade em seu visto, real ou presumida, é confinado e tratado como lixo pelas autoridades de imigração. Acabei nem arranhando direito o assunto, mas, infelizmente, creio que não faltarão oportunidades. No fim da Segunda Guerra, Churchill criou a expressão "cortina de ferro", para a extinta URSS. Agora, cada vez mais isolados e detestados (o que a grande maioria do seu mal-informadíssimo povo não entende e se considera ingratamente injustiçada), os Estados Unidos, para nós, cucarachas, estão aperfeiçoando a cortina de Baygon. Não digo que nunca mais piso lá, ao menos enquanto me permitirem e Snoopy se limitar a me farejar os baixios. Mas, como muita gente, estou perdendo a vontade e, por tabela, a admiração ainda restante.