Democracias modernas ou ditaduras mesmo?

(João Ubaldo Ribeiro)

Sim, não vivemos numa ditadura. Por exemplo, hoje, havendo amanhecido com a certeza de ter motivos para falar mal do governo, posso fazê-lo livremente. Mas liberdade de expressão, ao contrário do que muitas vezes parecem querer que acreditemos, não é um presente do Estado, é um direito básico. Esse direito é (para usar o demonstrativo da preferência do presidente Lula, em lugar de “este”, como em “esse país”, expressão há muito tempo empregada por ele ao falar no Brasil e que soa sempre como proferida por alguém que observa a gente de uma perspectiva distante), como não podia deixar de ser, reconhecido por este jornal (esse também, seguramente, embora só esteja me referindo a este) e amparado na configuração jurídica do regime, também como não podia deixar de ser.

Mas será que basta isso para caracterizar uma democracia? Claro que não vou entrar em discussões de filosofia política, mas ando meio desconfiado de nossa democracia e até de outras, uma das quais se considera exemplar, tal como a dos Estados Unidos, que bota tanta fé na sua que a deseja enfiar, junto com seus valores e tradições, pela goela abaixo de vários países que nunca de fato a conheceram nesses termos e que talvez não a queiram, para não falar que, considerando sua ficha de apoio a ditaduras, inclusive, antes de ela causar problemas, a de Saddam Hussein, a motivação americana oficial para tanta “democratização” é um pouco difícil de enxergar como um empreendimento altruísta.

Americanos amigos meus me têm dito que a cobertura da guerra do Iraque pela sua mídia está sendo obviamente controlada e que as informações são peneiradas ou maquiladas de acordo com os interesses dos ocupantes do poder. E, de fato, dificilmente pode haver maior vexame para uma democracia exemplar do que o tal resgate de uma soldado americano, exibido pela TV e depois denunciado como uma encenação completa. Agora também se lê que a imprensa de lá não pode, ou tem fortes motivos para não querer, mostrar os mutilados de guerra que voltam para os Estados Unidos. A informação, ponto capital de uma democracia, pois leva aos cidadãos os elementos necessários para que formem suas opiniões com a independência intelectual possível, não anda, por assim dizer, flor que se cheire, nos Estados Unidos.

E aqui, onde nunca fomos tão exemplares assim nessas questões, estamos numa democracia? Em contraste com o regime militar ao qual éramos submetidos há pouco tempo, o inegável é que, assim ou assado, estamos. O jus esper neandi, dir-se-á, já mostra que temos democracia. Mas, como diziam alguns, na boa e velha Faculdade de Direito da Bahia de meu tempo, vênia insto para discrepar. Em primeiro lugar, esse direito, que citei no habitual latim falsificado em que ele é costumeiramente mencionado, por si só adianta muito pouco, pois são muito escassos e problemáticos os canais para quem deseja espernear e, de modo geral, pode-se espernear à vontade, que não adianta nada. Em segundo lugar, até por mentalidade e formação deficiente, não estamos de fato habituados à democracia, porquanto a experimentamos muito pouco, talvez de fato nunca, dos tempos de colônia às eleições de bico-de-pena e aos currais eleitorais ainda abundantes por “esse país” afora.

Estamos acostumados a viver como se o governo não fosse nosso empregado, mas nosso patrão. E os governos, muito mais ainda, nos vêem como empregados e desprezam o que certamente é tido como firulas democráticas. Não é só este (“esse”?) governo, mas também os que o antecederam. Em que outro país democrático se suportaria o confisco do dinheiro de todo mundo (está certo, quase todo mundo) e as provações sofridas por um número incalculável de brasileiros, logo no começo do governo Collor? O camarada assume a Presidência — com o mando de sua equipe econômica exercido por uma senhora que virou czarina e hoje é uma sombra curiosa cujo poder passado temos dificuldade em compreender — e, com uma simples canetada, segura o dinheiro dos governados, como se o patrimônio da maioria dos cidadãos estivesse (e, pensando bem, ainda está) sob o controle irretorquível do governo. Chiou-se um bocado, é claro, mas acabou todo mundo agindo como se fosse, em última análise, coisa normal, coisa de qualquer governo mesmo.

Agora o governo não só continua a usar instrumentos de feição autocrática, como a medida provisória que instituiu o confisco de Collor e de como-é-mesmo-o-nome-dela, aquela que dançava “Besame mucho”, e que ainda se encontra disponível para canetadas voluntariosas. E a verdade é que o governo vem assumindo, cada vez mais, uma imagem imperial e truculenta de sabe-tudo, temperada com insensibilidade e ineficiência arrogante em diversas áreas, da postura de “quem não está comigo está contra mim” e, principalmente, de que “esse país”, afinal, passou a ser um feudo do PT. O Estado não seria mais o Estado, mas o PT — e o PT de posições muito diferentes das que professava antes de assumir o poder, exceto pelo uso de chavões ridículos, até nos adjetivos favoritos, como a tal espionagem “participativa” de que uma autoridade falou recentemente e cujo ridículo foi misericordiosamente esquecido.

Tudo isto foi para eu não deixar de também protestar contra a escandalosa, abominável, inconcebível, inaceitável, tirânica, insensível e, enfim, inqualificável situação a que o governo levou os idosos. Ouvindo falar, eu não acreditaria como tanta iniqüidade, crueldade e desprezo pelos valores mais elementares do ser humano entraram em ação — e por gente, a começar pelo próprio presidente, que vem com essa conversa moralmente indigente de “perda de pênalti” de um ministro que, está na cara, continua convicto de que agiu com correção e tem certeza de que nós, empregados do governo, temos que, como já estamos fazendo, engolir tudo passivamente outra vez. É, democracia pode ser, mas às vezes fede a ditadura por todos os poros.