Está tudo muito bem

(João Ubaldo Ribeiro)

Recordei aqui, faz poucos domingos, uma observação que, quando menino, ouvia dos mais velhos: o ano passa depressa, o que passa devagar é o dia. Pois é, o ano já passou. Está na hora do balanço de 2003. Contudo, não serei eu quem o fará, porque isso é tarefa de praticamente toda a imprensa e me faltam condições para tentar qualquer balanço, principalmente porque alio meu cretinismo topográfico a acentuado cretinismo cronográfico. Não diferencio bem um ano de outro, não sei quando aconteceu coisa alguma e morro de inveja de quem diz “isto foi em dezembro de 89”, pois tenho dificuldade em distinguir dezembro de 89 de outubro de 96 ou de qualquer outra data. Como as culturas primitivas que não dispõem de palavras para números superiores a três, só sei fazer referências a “não sei quanto tempo” ou “parece que foi ontem” e ainda não me acostumei direito a estar no século XXI.

Podia arriscar algumas previsões, mas a vidência é ofício incerto e perigoso, de maneira que não me aventuro além de “morrerá um grande estadista”, “perderemos dois artistas importantes” e “uma calamidade assolará uma poderosa nação” — esta última tornada mais fácil com a infestação maciça de pulgas nos Estados Unidos, cuja tendência por enquanto é agravar-se e cuja culpa já foi declarada nossa, não do Brasil especificamente, mas do execrando Terceiro Mundo em geral, através dos repulsivos representantes que espalha em toda parte. E também creio ser seguro afirmar que não haverá paz na Terra, pois nunca houve nem parece que haverá.

Resta, portanto, lembrar o que está mais próximo. Este fim de ano coincide com o aniversário do governo, cujo ocupante máximo vejo aqui nos jornais, equilibrando-se em cima de um skateboard e usando, como de hábito, o boné de um visitante. Simpático, muito simpático, bastante mais simpático do que a maior parte dos outros detentores do poder político em Pindorama, nome com o qual nos ensinam que os índios designavam o Brasil, pois eles sabiam que íamos do Oiapoque ao Chuí, éramos uma federação e mantínhamos uma certa rivalidade com a Argentina. E mais simpático ainda se torna ele, ao nos informar que o ano que chega na quinta-feira será o da realização dos nossos sonhos coletivos e que uma crisezinha de vez em quando não faz mal a ninguém.

É muito bom que nossos sonhos venham a realizar-se. Abrigo especial preferência pelo programa Fome Zero, embora ainda não, graças a Deus, devido a necessidade pessoal, uma vez que, depois de quitar os impostos que vivo pagando por estar oficialmente entre os mais ricos, tem sobrado um troquinho para o supermercado. Mas, como morador de uma grande cidade do Sudeste, não quero vir a ser obrigado, conforme o feliz e inesquecível dizer do ministro Como-é-o-nome-dele, a mandar blindar o possante Corsa 1.0 da família. Por enquanto, temos assistido ao continuado desenrolar do programa Tripa Forra, com seus beneficiários de sempre, entre os quais se encontram os membros do Congresso Nacional, que vão pegar um suado dinheirinho (ouço dizer que o governo mandará desligar o ar-condicionado dos plenários, para mostrar ao povo como transpira o Congresso) por vinte dias de trabalho no mês que vem e o sistema bancário, tão sacrificado que muitos bancos, ao contrário de nós, os ricos, nem pagam Imposto de Renda.

Claro, o Fome Zero vai deslanchar e, provavelmente, veremos florescer o Fome 0,01, semente que, nuns trinta anos, gerará a universalização, em todo “esse país”, do programa Meia Fome. Outras distorções serão corrigidas, tais como as que levaram o Ministério da Previdência a ver-se vítima da ingratidão da nação, por haver forçado os aposentados a sair da vagabundagem antes apenas denunciada, assim matando alguns velhinhos, falecidos por má vontade contra o sistema. O ministério anunciou que realizará o recadastramento dos aposentados e devem ter fundamento os rumores segundo os quais esse recadastramento não exigirá dos velhos os documentos requeridos no episódio anterior, mas simplesmente uma prova fácil de vida. Talvez uma homenagem conciliatória a Pernambuco, que se chateou, também injustamente, com a menção aos nordestinos acusados de favorecerem a indústria de carros blindados. Cada aposentado terá apenas de dançar um frevinho durante quinze minutos, para provar que está vivo. E, também se investirá pesadamente num esforço publicitário para convencer os velhos de que as campanhas de vacinação de idosos não se destinam a eliminá-los, como tem sido a convicção de muitos. Claro, é bem possível que, gasto o dinheiro com a propaganda, não sobre dinheiro para as vacinas, mas também não dá para fazer tudo ao mesmo tempo e teremos de esperar a criação de mais impostos, só mais um bocadinho. E — quem sabe? -— talvez se institua também o Haraquiri Participativo, revolucionária idéia para enfrentar a carga que os velhos representam para “esse país”.

Enfim, está tudo bem, tudo muito bem, com um pequeno senão aqui e ali para dar graça, porque perfeição é muito chata. A gente olha para o governo e percebe claramente que há coerência e uniformidade de ação. É só ver os homens no comando dos numerosíssimos altos escalões, todos barbudinhos e praticamente indistinguíveis uns dos outros. Maior uniformidade não pode ser alcançada. Encerro estas modestas observações de fim de ano exortando todos os meus compatriotas a renovar um crédito de confiança no governo. Até porque, pendurados do jeito em que andamos, renovar o crédito é a única forma de adiar o débito — o SPC permitindo.