Velhinho em folha

(João Ubaldo Ribeiro)

Vai ter reclamação. Sempre tem reclamação, quando me declaro velho. Vem de leitores com mais idade do que eu, que me consideram um infante mal saído dos cueiros e vêem no que digo a insinuação de que já estão mais ou menos com um pé na cova. Nunca pretendi fazer tal sugestão, mas compreendo que reajam dessa forma e até parei de me chamar de velho. Agora, contudo, é oficial, está na lei. Não a li, mas é do conhecimento público que quem tem mais de sessenta atualmente se enquadra na categoria de idoso, ou seja, velho mesmo. Isto quer dizer que sou idoso há três anos e, portanto, se não posso ter-me na conta de veterano, não há como classificar-me de calouro.

Manda a honestidade, porém, que eu confesse ter sido um idoso negligente e alienado. Até a semana passada, nunca havia feito o menor esforço para assumir de verdade minha condição. Mas agora, subitamente, fui despertado para sua plenitude e devo dizer que estou encantado com os horizontes abertos. Achando-me calejado e até meio cético, pensava que não toparia com mais descobertas e desafios. Que engano, que visão estreita da existência! Como tinham razão os que diziam que a vida começa aos sessenta! Vocês, meninas e meninos de cinqüenta, ainda não viram nada, em sua ingenuidade juvenil. Percebo claramente que ser idoso é um grande barato e mal posso esperar pelos dias vindouros, quando pretendo explorar todas as vias abertas, cujas potencialidades ainda apenas vislumbro, mas tenho certeza de que serão uma fonte inesgotável de experiências enriquecedoras.

Sei disso porque já estreei minha (desculpem) idosidade e é igual a um brinquedo novo, não quero largar. Da mesma forma que outros achados felizes, minha iniciação se deu por acaso. Foi numa prosaica fila de banco. Estava eu na fila comum, quando observei, bem ao lado, que havia uma para gestantes, deficientes e idosos. No raciocínio veloz que me caracteriza, ponderei as informações durante alguns minutos. Não sou deficiente (a não ser mental, mas até hoje relativamente pouca gente reparou), não me encontro grávido, mas — aleluia! — sou idoso. Como perder aquela chance inédita? Senti falta de um fotógrafo para registrar o momento, mas a felicidade não pode ser completa e, sem mais hesitação, passei emocionado e, não nego, um pouco nervoso, para minha primeira fila de idosos.

Ah, nem lhes conto, foi um impacto atrás do outro. A fila, naturalmente, andava bem mais devagar do que a normal, mas aqueles moços imaturos que compunham a do lado não faziam idéia do que estavam perdendo, a começar pela extraordinária companhia em que me vi, logo rodeado de amigos feitos na hora, todos ansiosos por trocar experiências e estabelecer um sadio convívio geriátrico. Creio até mesmo, Deus me perdoe, pois não quero ser gabola nem indiscreto, que, se tivesse demorado na fila mais do que os quarenta minutos que passei nela, a conversa com a companheira de bengala e aparelho de surdez teria dado futuro. Cheguei a cogitar em pedir o número do telefone dela e só não o fiz porque ela observou que seu programa favorito era bingo e eu não sou bom de bingo. Mas foi muito estimulante para o ego notar que ainda desperto vivo interesse feminino e, se me dedicar um pouco ao bingo ou aos bailes da terceira idade, sou capaz de fazer grande estrago no mulherio, que é que vocês estão pensando.

Saí dali para um cenário luminoso e repleto de perspectivas inebriantes. Sim, agora eu via como a vida nos destina surpresas preciosas, descerrava-se um mundo ignoto e inexplorado, cabia esmiuçar cada possibilidade, era preciso desfrutar do esplêndido leque que se desdobrava, uma avalanche tão farta que estonteava. Por onde começar? Difícil, bem difícil, mas ao mesmo tempo fácil, é só não se afobar e ir pegando o que aparece, sem dar importância a prioridades complicadas de estabelecer, deixando a vida me levar.

E ela leva. Mal pus os pés na rua, quis o feliz acaso que eu comprasse um jornal e visse, logo de primeira, que o Estatuto do Idoso prevê adoção para nós. O coração bateu mais acelerado. Adoção? Quer dizer que poderei inscrever-me num dos programas que certamente serão criados e esperar pelos meus pais adotivos? Não se deve querer impor condições excessivas ao processo de adoção, mas de uma coisa estou seguro. Vou querer um pai tipo paizão mesmo e, se prometo bom comportamento (inclusive tomar banho assiduamente, pois li também que nós, idosos, costumamos criar dificuldades para tomar banho, coisa que ainda não faço, mas vou treinar para fazer, enquanto não for adotado), exijo mesada digna e Papai Noel, espero ser levado regularmente ao Maracanã e, quando completar setentinha, comemorar no Disney World. Além, é claro, de passar as manhãs de domingo no Baixo Vovô, fruto natural da existência, inegavelmente discriminatória, do Baixo Bebê, aqui no Leblon.

Fiquei tão exultante que decidi ostentar meu status e mesmo inaugurar uma linha de camisetas para nossa identificação, com dizeres apropriados. Aceito sugestões, porque até agora só bolei “Idoso — Use sem agitar”, o que pode ser até um bom começo, mas haverá melhores. O céu é o limite e, garanto a vocês, minha próxima iniciativa, acreditem se quiserem, será usar meu sagrado direito de andar de graça nos ônibus. Estou apenas aguardando que se apresentem voluntários para minha equipe de apoio, pois dizem que exercer esse direito é um esporte radical, que requer adestramento especial e uso de capacete, joelheiras, cotoveleiras e tanque de oxigênio portátil. Mas um dia destes eu tomo uma papinha de aveia reforçada, meto no juízo uma dose dupla de Maracugina, fico doidão e encaro. O idoso brasileiro é o melhor do mundo.