Situação sob controle

(João Ubaldo Ribeiro)

É com acentuado nervosismo que pego da pena para relatar as primeiras impressões do esforço de reportagem novamente empreendido por esta coluna, no afã de manter a nação a par dos mais recentes eventos aqui em Itaparica. Não falei antes por motivos de segurança, mas no momento me encontro no aceso do front em Itaparica, aonde cheguei faz alguns dias, pronto para desempenhar uma das mais nobres missões do jornalismo, qual seja a de ir diretamente à fonte das notícias, não importando os riscos envolvidos. Já estou tendo de enfrentar a penosa readaptação à radioatividade peculiar à ilha, cujos efeitos logo se fazem notar. A pobre vítima é avassalada pela compulsão incontrolável de cair em qualquer rede pela frente, para nela conservar-se o resto da vida, com intervalos para moquecas, vatapás, carurus, acarajés, abarás e outros sacrifícios gastronômicos impostos pelas circunstâncias locais. Felizmente a tecnologia colabora e é possível levar o lepitope para a rede e, durante cinco dias de trabalho intenso, completar a extenuante faina de enviar o material para o jornal, tomando fôlego para um clique de mouse a cada trinta mi-nutos. A vida do correspondente é dura. Basta que lhes conte que até agora não achei ninguém para me auxiliar a mover o queixo e assim mastigar umas cocadinhas que me deram de presente. Sei que é difícil acreditar, mas estou tendo de mastigar sem a menor ajuda, é muito estressante.

Mas tudo faz parte da missão e não persistirei nas reclamações, por mais justificadas. Vamos aos fatos. O primeiro deles, lamento confirmar, é que o mundo, como temos todos suspeitado ao longo destes anos, vai acabar mesmo. Se não fosse por Itaparica, aliás, talvez já houvesse acabado, mas temos logrado sucessivos adiamentos e persiste a certeza de que, quando finalmente vier o fim dos tempos, só iremos saber três meses depois. Nem mesmo aqui, porém, deixamos de sentir as conseqüências da irresponsabilidade com que vêm tratando o planeta. Imaginem os amigos que, em pleno glorioso mês de janeiro, tem chovido todo dia, coisa que não acontecia desde o tempo em que o padre Vieira se desentendeu com os santos que não estavam fazendo nada na guerra contra os holandeses e Santa Bárbara, que domina bem esses assuntos de ventos e tempestades, se melindrou e resolveu mostrar ao padre que ele podia ser o grande Vieira e tudo mais, mas não podia tomar ousadia com a corte celeste. Aí mandou ver nos vendavais até que ele se tocou, pediu a interferência de seu xará Santo Antônio e o negócio parou, depois de muito apaziguamento, porque todo mundo sabe que Bárbara é ótima pessoa, mas tem o gênio difícil e demora a se acalmar.

Dessa época em diante, os janeiros vêm sendo normais, com a exceção deste. Sacramento, o prefeito, garantiu que não tem nada com o problema, jamais abriu a boca para dizer isso assinzinho de santo nenhum. Anotei, mas manda a ética obter uma entrevista com Vicente, ex-prefeito e comandante da oposição democrática. Não é impossível que Vicente apresente outra versão do panorama hagiometeorológico. Estou no pressuroso aguardo dessa audiência e, a qualquer momento, em edição especial, poderei levar os resultados a vocês. Tenho olheiros no Largo da Quitanda, mas até agora Vicente não apareceu. O suspense pode se tornar insuportável, porque, se a chuva não se mancar, o fim do mundo é certo. Mantê-los-ei informados e, se depender de mim, vocês serão avisados a tempo de poderem estourar o orçamento comprando no crediário tudo o que quiserem, já que a cobrança só será feita no Além, onde o cadastro dos inadimplentes deve mudar bastante.

Restam alguns consolos, porque, sob outros aspectos, a situação permanece sob controle. Os bichos, por exemplo, continuam a merecer confiança. Os calangos vêm passear no muro nos raros momentos de estiagem. Ubirajara, o gordão que mora na forquilha da mangueira e nunca se distinguiu pela fineza, agora parece que se casou com uma calanga de cidade grande, talvez até Nazaré das Farinhas, a qual deve ser dessas calangas modernas e o enquadra numa boa. Pelo menos, ainda não o flagramos nem uma vez na safadagem que lhe marcava a conduta, desrespeitando calangas de família e utilizando abusivamente seus dois — como direi? — instrumentos amorosos (pois é, quem não sabia que fique sabendo: o calango tem dois, é o que estou lhes dizendo; depois a gente fica achando que o bicho de que Deus mais gosta é o homem).

Agnaldo, o sabiá que também mora na mangueira, só que na cobertura, nos recebeu com a habitual cordialidade, apesar de, como já se esperava, não ter renovado o repertório. A voz permanece esplêndida, embora ele bem que pudesse decorar pelo menos mais uma ária ou duas, considerando que começa a cantar perto da janela do quarto antes das cinco da manhã e só se detém brevemente para o almoço, mas ele insiste no sucesso de sempre, deve ser a moleza da radioatividade. E, finalmente, comunico com orgulho que temos um novo habitante, um caramujo enorme, que ontem completou uma maratona de oitenta centímetros cravados, em menos de seis horas. Falamos dele a Xepa, que dá uma olhada na casa em nossa ausência.

— Ah, é Barrichello — disse Xepa. — Acho que ele veio para passar uns dias e foi ficando até hoje, que nem os gringos. Ele é famoso, tem gente que vem aqui só para apreciar os piques dele, uma vez ele atravessou a calçada em menos de uma semana, é um relâmpago.

Subsistem, pois, esperanças e galardões a ostentar. Enquanto isso, podem confiar neste seu correspondente, que prosseguirá intimorato no cumprimento do dever. Agora mesmo vem aí uma equipe da Defesa Civil de Salvador, para me levantar da rede. Com um guindaste e algumas horas de trabalho, eles conseguem e vou à luta. Se eu não der as caras aqui no próximo domingo, será porque ainda estarei indo.