O velho lobo

(João Ubaldo Ribeiro)

No momento em que remeto mais este despacho, diretamente da Denodada Vila de Itaparica, ainda nos encontramos sob o acabrunhante impacto do desempenho da chamada seleção pré-olímpica frente ao Paraguai. Nessas questões patrióticas, a ilha sempre foi muito rigorosa e vai ser difícil a gente esquecer a vergonheira. A opinião geral é de que nenhum time daqui, inclusive o glorioso Papo (Pernetas do Alto das Pombas, informo a quem não acompanha direito o panorama futebolístico brasileiro), teria desonrado a nação de maneira semelhante e que um bom regime soviético até podia mostrar alguma serventia nesse particular.

— Eu sempre fui anticamunista — me disse Pretinho, enquanto escamava um robalete em sua conceituada banca de peixeiro no Mercado — mas numa hora dessas bem que um camunismozinho faz falta, porque, se fosse na Rússia daquele tempo, já tava tudo gelando na Libéria pra nunca mais aparecer, nem muito menos tirar onda de que joga bola. Nesse ponto o camunismo sempre teve certo: botou saiote e salto alto em campo, vai remetido direto pra Libéria, que é lugar de peladeiro tirado a fricote.

Sobra o consolo de que, graças à Providência, o técnico Ricardo Gomes, não muito saudosamente recordado pela torcida do Vitória da Bahia, onde alguns maledicentes ainda se referem a ele como Múmia Paralítica, não estava por aqui durante os combates contra os holandeses ou ocupou o lugar do tenente João das Botas nas batalhas da Independência e, mais graças a Deus ainda, não era o general Osório na Guerra do Paraguai. Do contrário o nome de Salvador seria hoje Solanolopezlândia, São Paulo seria a capital mundial do uísque Old Stroessner e a principal atividade econômica do Rio seria o sacoleirismo. E temos moral para falar, porque todo mundo sabe que quem desceu o cacete nos holandeses fomos nós, quem garantiu a Independência fomos nós e quem ganhou a guerra do Paraguai também fomos nós, levando até os orixás para lá e substituindo a pólvora inimiga por farofa de dendê.

Mas é isso mesmo, vamos ter de engolir a humilhação e seguir em frente. Pelo menos a chuva parou e tudo faz crer que o fim do mundo foi novamente adiado. Retomamos a rotina do verão e consegui sair da rede, para ocupar meu posto como orientador de visitantes desinformados, notadamente quanto a problemas relacionados com navegação e condições meteorológicas. Sou bom nisso, pois domino profundamente o assunto. Pasmem, mas sei que a proa é na frente, a popa é atrás, boreste é à direita e bombordo à esquerda. E, no que tange a ventos, aragens e virações, não curvo a cabeça para ninguém, porque aprendi tudo com o finado Vavá Paparrão, inclusive a cara, principal instrumento de trabalho do meteorologista. Sem uma boa cara de oráculo do tempo, não se vai a lugar nenhum, porque o resto é acessório. Imprescindível usar um chapéu de palha e preguear bastante as feições, na hora de atender às consultas.

— Como é, mestre, essa trovoada vai cair?

Não se responde de pronto. Lentamente, ergue-se o olhar para o firmamento e o horizonte, às vezes se molha o dedo na boca para sentir de que lado sopram os ares e se fala com serena autoridade.

— Isso aí não é trovoada, é roncação.

Muitos perguntadores, receosos de mostrar mais ignorância de fato tão elementar, agradecem reverentes e param aí. Mas há os insistentes. Está certo, não é trovoada, é roncação. Mas, indaga o impudente analfabeto, qual é a diferença entre uma e outra? Um leve sorriso de desdém condescendente precede a resposta.

— A roncação ronca, a trovoada atroveia.

— Mas vai chover ou não vai?

Trata-se evidentemente de um chato, sem respeito pelos mistérios do tempo e seus profetas. Na maior parte dos casos, como bem assimilei observando Vavá em ação, o melhor é aplicar um tratamento de choque no atrevido e pô-lo em seu devido lugar. Isso geralmente resulta num massacre acachapante, mas não se pode ter pena, é deseducador.

— Bom, o dia abriu no sudeste. Não venha me dizer que vosmecê não viu que abriu no sudeste.

— É... O sudeste... Bem, eu acordei um pouco tarde, não vi nada.

— Acordou mal, o mar não aprecia quem acorda tarde, esse povo de depois das quatro. Pois é, abriu no sudeste. Mas empilhou no boroeste, a maré virou e aí bateu lua em cima de lua. Bateu lua em cima de lua, coisa e tal e, quando o sudeste ia garrar, já estava quase garrando, baixou o sul e trancou, tá trancado até agora. Isso em riba da vazante, já viu, não é? Rolou a água de cima no canal, a contracorrente castigou na boca do Paraguaçu, a água de baixo carambolou e agora está isso aí e vai ficar até o nordeste arriar, possa ser que arreie, possa ser que não arreie.

Não conheço caso de quem faça nova pergunta, não há condição psicológica. Outra vez a sabedoria secular do velho marinheiro impõe sua força. Até porque, se o infeliz for procurar elucidações oficiais, receberá a explicação de que uma frente fria, que ninguém sabe o que é, talvez venha aí, mas também talvez não venha, o que, em matéria de esclarecimento, é muito mais pobre, notadamente sob o aspecto literário. Podem ficar tranqüilos, que hoje fará bom tempo. Se não fizer, ou o boroeste trancou ou o presidente Dirceu soube e vai suspender tudo até criar o imposto da luz solar, que virá logo depois da implantação do Ministério da Iluminação Natural Participativa.