A gripe do momento

(João Ubaldo Ribeiro)

Vocês pegaram a gripe que anda circulando por aí? Se não pegaram, ponham as mãos para o céu, empanturrem-se de suquinhos e vitamina C e não cheguem a menos de dois metros de ninguém. Maior algozaria não pode haver. Não é uma gripe, é uma peste bubônica mal disfarçada. Ainda estou com medo de morrer, entre calafrios, tosse convulsiva, coriza torrencial e demais manifestações humilhantes dessa doença, certamente das mais antigas que afligem a Humanidade e, para marcar nossa desprezível condição, até hoje invulnerável a qualquer tratamento.

Lembro, pedindo desculpas aos muitos que já terão lido isto antes, a constatação que alguém já fez a respeito da gripe: se o gripado vai ao médico, a doença passa em sete dias; se não vai, ela passa em uma semana. Não adianta chiar, tomar as tisanas graveolentes das quais todo mundo conhece uma receita e fazer simpatias ou despachos. Ela, como sabemos e volta e meia nos é demonstrado, não dá importância a nada disso e só vai embora depois de cumprida sua missão infernal.

Esta que quase me mata agora parece, embora seja fingida e dê falsas esperanças, já ter começado a retirar-se. Mas é apenas o começo da retirada, porque continuo a me sentir pior do que deve sentir-se uma barata depois de uma prise de Rodox. Só consigo escrever com intervalos de vinte minutos a cada dez linhas, evocando a todo instante o pessoal que me ensinou o pouco de jornalismo que sei (já lá se vão mais de quatro décadas e não três, como disse na semana passada — deve ter sido, além de burrice para contas, um ato falho), no regime então vigente nas redações onde nos formávamos, ou seja, no tapa. Furador de pauta ou descumpridor de prazo de fechamento só faltava ser punido com um tiro na nuca. E o descrédito profissional generalizado era uma sombra que sempre perseguiria o infeliz, mesmo quando ele tinha sucesso. Isso causa um certo trauma na pessoa e há de ser a razão por que não peguei o telefone para comunicar à redação que desta vez não vou cumprir.

Não foi por força de expressão que mencionei medo de morrer. Fiquei com medo de morrer mesmo, principalmente depois que vi na televisão avisos contra a gripe, dirigidos de maneira especial à turma do meu tope, chamada carinhosamente de “anciã” pelo locutor. Mal me adaptei a ser idoso, já tacam ancião em cima de mim, o que abala um pouco o elemento e com certeza lhe baixa as defesas imunológicas. (Acho até que o jeito para essa campanha de desmoralização vai ser uma solução já muito empregada, mas tão repetida que deve funcionar de alguma forma. Estou pensando em, no próximo ano, não fazer 64 como previsto, mas 59, descobri que não curto muito esta de idoso. Tenho a esperança de que ainda cole, embora talvez mister se faça pedir um favorzinho a meu confrade Pitanguy.)

Pois é, avisava a notícia, com o desvelo sádico que se reserva aos moribundos, os anciões devem tomar especiais cautelas, porque as mais modernas cepas do vírus, brotadas este ano no renomado primeiro mundo, não estão aí para brincadeira e a meta é dizimar quem não se aprecatar. Aprecatei-me como pude, mas não houve apelação. Logo no sábado retrasado de manhã, tripulando meu posto costumeiro no boteco Tio Sam, senti que os dias subseqüentes não se afiguravam auspiciosos. Nem o encantador desfilar de minhas vizinhas de bairro, tão belas, louçãs e evocativas da longínqua mocidade, conseguia fazer-me despendurar o beiço. A desgraçada, incoercível como a maré enchente e como ela irrefreável, foi me engolfando e apertando seu abraço sufocante com força cada vez maior. Chegada a noitinha, eu já me considerava pronto para a UTI, um farrapo humano que mal conseguia falar.

Desde menino, entro em delírio quando tenho febre, já tenho prática. Aliás, sou bom nisso e o pessoal da clínica que freqüentei com bastante assiduidade alguns anos e que chegou a ser uma espécie de segundo lar, me garantiu que nunca lá se hospitalizou tão bom alucinado quanto eu. Uma seleção de meus melhores momentos alucinatórios, se pudesse ser gravada em DVD, provavelmente teria grande saída, com destaque para o jogão do Vasco que vi na parede, o musical colorido que fiz com a turma do Casseta e Planeta (e do qual despertei havendo entusiasticamente puxado fora a sonda que me tinham enfiado no duodeno através do nariz, vocês não sabem o que é botar essa sonda duas vezes) e a cena de filme de campo de concentração nazista durante a qual insultei em inglês um médico que me parecia vestido de Dr. Mengele. Mas isso foi numa mera pancreatite quase fatal, nada que se comparasse a esta gripe. O mínimo que me aconteceu desta vez foi um pesadelo que me atormentou durante umas três ou quatro horas, no qual meu computador abria uma boca crocodilesca, cheia de ícones assombrados no lugar de dentes, tentando me devorar, em carreirões atarantados pelo quarto. Pode parecer engraçado, mas asseguro que não foi.

Claro, houve suspeita de pneumonia, fui radiografado, é só a gripe mesmo. E não estou narrando toda esta desdita somente porque, ainda desta feita, é impossível pensar em outra coisa. Acredito estar prestando um serviço público, ao exortar meus companheiros e companheiras anciões a que participem da campanha de vacinação que, informou a reportagem citada, será novamente empreendida pelo governo. Sim, devemos confiar, eu também vou me vacinar. Vale tudo para não enfrentar essa gripe, podem ter certeza. E, justiça seja feita, nenhum ministro até agora falou em eutanásia participativa ou num programa Velhos Zero. Acho que, até mesmo devido à gorada iniciativa do Ministério da Previdência nessa área, isso ainda é coisa para mais pelo menos uns dois anos.