O celular

(João Ubaldo Ribeiro)

Antigamente, minha marginalidade se acentuava muito nas festinhas em que, segregados das mulheres, os homens se recolhiam num canto da casa e discutiam os terreninhos. Todo mundo tinha um terreninho, cujas características eram debatidas em minúcias, a começar pelos metros quadrados, noção que sempre me escapou e creio mesmo que só consegui passar no ginásio porque devia existir alguma quota secreta para itaparicanos de óculos. Era uma situação confrangedora, porque, já pai de família, ser o único entre os amigos a não ter um terreninho, nem que fosse a seiscentos quilômetros de qualquer lugar, deixava o sujeito coberto de opróbrio. A vida acabou me afastando da maioria desses amigos, mas a lembrança cruel de minha cara de sem-terreno, refletida dolorosamente no espelho, nunca vai embora.

Hoje, creio que ninguém dá mais muita importância ao terreninho. Imagino que meus companheiros de boteco, todos os quais com certeza têm um terreninho, só me recebem em seu selecionado círculo de amizades porque pensam que eu já conto com meu terreninho, não devem nem admitir hipótese diversa. Não tenho terreninho nenhum, é claro, mas também não falo nada, deixo que pensem o que quiserem, há um limite para a execração pública. Além disso, os tempos mudaram. O básico agora, todo mundo sabe, é o celular.

Li em algum lugar que os brasileiros, com pobreza e tudo, estão entre os que mais usam celulares no mundo. Deve ser verdade, tanto assim que, em meio a mais um debate sobre o assunto, me explicaram que os infelizes excluídos do mundo celular não se rendem à tirania do destino e compram imitações. Não ligam para lugar nenhum, nem fazem nada além de parecer com celulares reais, mas são suficientes para conferir status. O fenômeno está a clamar por um sociólogo que lhe dedique pelo menos uma monografia. Que é que faz uma pessoa sacar um celular de mentirinha, botar os óculos para digitar números, assumir o ar compenetrado de quem vai resolver se o Copom baixará ou não as taxas de juros e falar para ninguém durante vários minutos?

É um ritual intricado no qual, segundo tenho podido observar, se inclui a execução rigorosa de atos incompreensíveis para os cada vez mais raros leigos, como eu. Por exemplo, há uma corrente forte entre os celularistas que só admite usar o aparelho andando de um lado para o outro. Sentado e parado, não pode. O camarada está quieto, sentadinho diante de uma tulipa de chope, o celular toca e imediatamente ele se levanta e passa a percorrer o recinto a passos largos, gesticulando como se o interlocutor o pudesse ver. No início, eu pensava que era apenas para que todos vissem que o orgulhoso detentor do aparelho estava fazendo uso dele, mas há mais que isso. Aquela comunicação deve mexer com todo o ser do comunicante, deve representar uma experiência transcendente, de que só o contato direto pode dar idéia.

Em salas de espera de aeroportos, creio que em breve será impedido o acesso de quem não porte um celular. Basta entrar numa delas para ver. Antes mesmo de aboletar-se, a maioria brande o celular e começa a falar. A pergunta, seguramente boba, é sobre o que tanto conversam. Para onde ia essa conversa toda, antes dos celulares? Melhor formulando, como antes era possível a vida dessa gente? Talvez se chegue à conclusão de que não era realmente uma vida, era quase uma privação sensorial de gravidade, pois não duvido que, em breve, a moderníssima medicina decrete anormal quem não use celular. Sem celular, não se passará de um aleijado, ou, para usar expressão politicamente correta, um “comunicacionalmente prejudicado”.

Comunicacionalmente prejudicadíssimo, vejo-me de novo tentado a ingressar num mosteiro de regra severa, que nem falar permita, quanto mais no celular. Mas a luta está perdida, até porque os celulares são cada vez menos usados para falar mesmo. O de um amigo meu, cujo nome ora prefiro esquecer, começa com um curso básico de música erudita. Outro dia, ele nem conseguiu mostrar todo o repertório de toques de sua nova máquina (trocada toda semana por uma mais aperfeiçoada), mas deu para ouvir a Filarmônica de Berlim. Não percebo bem para que o sujeito precisa que Karajan dispare um naipe de metais no bolso dele, quando a mulher quer saber a que horas ele vai interromper a vagabundagem e voltar para casa, mas deve ter o seu valor, para quem desenvolveu o gosto.

E não é só isso, me conta ele, achando que, ao confessar não ter celular, eu estou é escondendo minhas fichas. O dele fotografa, recebe e envia e-mails, joga dezenas de jogos e — maravilha das maravilhas — o modelo mais recente o localiza onde quer que ele esteja. Como assim, o localiza? Localiza, localiza, diz ele, iniciando uma complexa série de operações que, depois de laboriosamente interpretadas, acabam de confirmar que ele está na cidade tal, rua tal, na América do Sul. Mas ele já não sabia disso? Sim, sabia, mas agora era coisa cientificamente corroborada, antes do celular tal certeza era impossível.

E as mudanças não cessam, em todas as áreas. A tradicional leitura sentada no trono do banheiro está sendo vertiginosamente substituída por uma conversa no celular. O namoro, me contou uma mocinha dessas que acha que sou aguerrido sexólogo e degenerado militante, mudou muito.

— Até vibrador meu celular tem — disse ela, com uma piscadela marota, do estilo que se reserva para degenerados militantes.

— Mas isso não é novidade, vibradores existem há muito tempo.

— Interativos, com comando remoto? — respondeu ela. — Acionados por uma ligação do namorado, com mensagem erótica escrita?

— Tire esse bicho daí — disse eu.