O Estado em ação

(João Ubaldo Ribeiro)

A vida às vezes traz boas surpresas. Como digo a vocês volta e meia, parece que sou o único a ler essas coisas, sabe Deus lá por quê, de maneira que me apresso a repartir as boas novas. O Estado brasileiro não pára, meus caros amigos, desta feita através do Poder Legislativo. Ao contrário do que alegam os negativistas, derrotistas e — por que não dizer? — fracassomaníacos, tem gente pensando em nossos problemas e, o que é melhor, apresentando soluções criativas de inestimável alcance. Peço desculpas, a vocês e a ele, por haver esquecido o nome do deputado autor do projeto de que vou falar, pois não sei onde meti o jornal onde vi a notícia. Mas estou certo de que ele não faz questão de publicidade, e o que interessa é o bem público que todos queremos.

Sei pouco sobre o projeto, talvez apenas o essencial. Trata-se da criação de uma taxa a ser cobrada dos proprietários de animais domésticos, que se destinará, dizia a matéria, a ajudar as crianças de rua. Justo, justíssimo, até porque é grande o número de cachorros e gatos com vida luxuosa e muito mais cara do que as crianças abandonadas, ou mesmo as de classe média. Portanto, a iniciativa abriga relevância suficiente para que especulemos sobre as implicações da possível aprovação do projeto, com base em nossa experiência coletiva.

A primeira providência, claro, pois, mesmo que não conste do projeto original, outro parlamentar não deixará de propor a emenda, será criar a Agência Nacional de Registro de Animais Domésticos, cujos cargos se preencherão criteriosamente, na próxima ocasião em que o governo precisar de votos na Câmara ou no Senado. Gerar-se-ão empregos e empregos a mancheias, bem como investimentos em instalações e equipamentos — injeção na economia. Aliás, a carência de pessoal e material será tamanha que a arrecadação da taxa, nos primeiros anos, se verá forçosamente absorvida pela cobertura, ainda que retroativa, desses custos. Não está descontada também a hipótese de que, mesmo assim, a ANRAD continue deficitária, mas aí será instituída a Contribuição Provisória (carinhoso eufemismo nacional de “permanente”) para a Manutenção da ANRAD e tudo se resolve.

Fundamental será, logo a seguir, a realização do Primeiro Cadastramento Nacional de Animais Domésticos, o logo popular Pricanadão. Mais empregos, conquanto temporários, para heróicos agentes que, do Oiapoque ao Chuí (ainda é isso? Se já mudou, corrijam aí, é coisa de velho, pois, se o dr. Cesar Maia já é matusalém aos 59, imaginem um sujeito quatro anos mais idoso, como eu), irão de casa em casa e de barraco em barraco, fichando cada bichinho de estimação que encontrarem. E multando, naturalmente com fins educativos, quem, para citar uma possibilidade, não se deslocar a tempo do interior do Acre, para cumprir o dever de registrar seu canário na agência mais próxima de casa, localizada em Belém. Sim, no início o processo não poderá ser perfeito, até porque a informatização só virá depois da implantação do Imposto de Aparelhamento Cibernético, de maneira que grande parte dos animais domésticos brasileiros — aí compreendida, receio, a vasta cachorrada lá de Itaparica — cairá na informalidade, ou mesmo na marginalidade, com o ulterior estabelecimento corretivo do Programa Nacional de Regularização da Inclusão Social dos Animais de Estimação Marginalizados, financiado, pois nada é de graça neste mundo, pela Contribuição Provisória (permanente) para a Regularização etc. etc.

Cabe também prever mecanismos para enfrentar determinados acidentes de percurso comuns em tais situações, pois essas coisas acontecem, por mais que a gente se previna. No caso em tela, talvez seja apropriada a elaboração de mecanismos destinados a coibir e punir sem misericórdia os responsáveis pelo que virá a ser conhecido, em relação a cães, como a reprovável prática do subcachorramento, ou seja, o sujeito ter oito cachorros e, com a conivência de uma autoridade corrupta (elas existem; sei que é difícil acreditar, mas existem), declarar apenas dois, assim sonegando preciosos recursos. Deverá também, com toda a certeza, existir alguma forma e serventia para o supercachorramento, mas tenho dificuldade em entender essas questões, apesar de tão triviais em nossa História. Haverá quem saiba. Todavia a Polícia Federal, através da Operação Scooby-Doo, desmascarará a máfia do cachorro e se instalará a CPI do Cachorro, do Gato e do Papagaio. Os trabalhos, porém, esbarrarão na falta de dados confiáveis, o que obrigará à realização do Primeiro Recadastramento Nacional de Animais de Estimação, com a montagem de novas equipes, custeadas pelo Empréstimo Compulsório para Recadastramento etc. etc.

E, já que os animais precisarão de coleiras ou equivalentes para a comprovação pública do registro, penso ainda na eventualidade de o Ministério Público denunciar um esquema de falsificação de coleiras de gato com ramificações em todo o território nacional e finalmente exposto a execração geral pelos resultados da Operação Garfield, outra façanha da Polícia Federal, agora desmantelando o Felinoduto, cujos principais participantes serão presos mas logo soltos, pois falhas na legislação não permitirão o enquadramento de falsificadores de coleiras de gatos, só de cachorros — distração do legislador que tornará imprescindível uma convocação extraordinária do Congresso para sanar a grave lacuna, ao custo de um Boeing por dia de sessão.

Enfim, não creio que necessite mais alongar-me, até porque todos vocês poderiam imaginar muitas outras perspectivas. Acho que, por hoje, minha contribuição para o fortalecimento de nossa confiança no futuro está dada. O Estado não dorme, ele cuida de nós. E vem aí o vale-Lexotan, temos deputados para todos os fins.