Mais uma festa da democracia

(João Ubaldo Ribeiro)

Tempo de eleição sempre me deixa nostálgico. Além de cretino topográfico que se perde em qualquer lugar, sou cretino cronográfico e nunca me lembro de datas, do que foi antes ou depois, há um mês ou um ano. Aceito até alegações de que sou cretino completo mesmo, pois não somente acho que pode assistir razão a quem alega, como, de qualquer forma, estou inclinado a entrar nessa de paz e amor também, chega de reclamação, ao menos hoje. Embora, a julgar pelo pessoal que me fala na rua, venham gostando de minha recente postura meio sem paciência com o que continuamos a enfrentar. Mas como reclamar, agora que parece que já não vamos enfrentar os ventos siberianos das últimas semanas e o fulgurante astro-rei já faz espargir seus raios dourados sobre nossas cabeças tropicais? E, principalmente, como nos queixar do que lá for, se estamos começando a viver, com as campanhas eleitorais em andamento e as eleições chegando, mais uma festa da democracia?

Não, não vou reclamar de nada, vou ficar nostálgico mesmo. Sou de uma geração que votou pela primeira vez muito jovem e aí, coisa vai, coisa vem, nunca mais votou durante um tempão. Portanto, ou só tenho recordações eleitorais recentes, de cuja maior parte gostaria de esquecer, pois que, quando disseram que brasileiro não sabe votar, deviam estar se referindo a meu caso, ou bastante remotas, romantizadas como gostamos de fazer com a infância. Já falei nisso aqui, mas também acho que o leitorado aprecia remoer, volta e meia, acontecimentos e comportamentos que fazem parte de nossa existência coletiva e que muitos já desconhecem.

Sim, a democracia, como ela sempre funcionou bem entre nós! Minha família, dos dois lados, se metia em política partidária e eleitoral e minhas primeiras visões da afamada soberania popular em ação ainda vêm da época nebulosa em que comecei a me entender. Aqui devo misturar recordações de Sergipe, onde fui criado até uns 11 anos, com outras de Itaparica, aonde ia sempre que podia, ficar na casa de meu avô materno, que era coronel. Não como também já contei, mas com certeza há quem não lembre ou tenha lido coronel do Exército ou da Polícia Militar, mas coronel do interior mesmo, porque, nessa época, Itaparica ainda era interior de verdade, bem diferente do quase subúrbio de Salvador que é hoje.

Acho que foi em Itaparica que, sem entender direito o que se passava, testemunhei as aulas de desenhar assinatura. Os analfabetos não podiam votar e, como não havia tempo para ensinar aquele povaréu todo a ler, nem ninguém estava muito interessado, ensinava-se a desenhar a assinatura. Havia alguns talentos pictóricos de valor nessa turma, porque me lembro de gente (caneta-tinteiro, que eu acho que tem muito jovem por aí que não sabe do que se trata, não era para qualquer um) que, com dois ou três dias de adestramento, arregaçava as mangas, ou, no caso das mulheres, meneava a cabeça desafiadoramente para trás e passava a mão no cabelo, mergulhava a pena no tinteiro, dava uma sacudidinha para não vir tinta demais, rodopiava no ar a caneta em riste e tascava uma assinatura que a gente ficava com pena de não poder registrar para passar no cinema. Uma beleza mesmo, parecia um vôo ornamental.

Já outros demoravam mais um pouco, tinha até a turma do papel de seda. Ou seja, alguma professora e cabo eleitoral escrevia a assinatura num papel comum e punha em cima dele um papel de seda, para o aprendiz cobrir os traços visíveis embaixo. Certos casos requeriam grande dedicação por parte do treinador. O aprendiz começava com lápis e a graduação para a caneta às vezes, creio agora, levava semanas. E, no final, quem não conseguia senão copiar a assinatura escrita em outro lugar, como quem copia um desenho, enfiava o modelo no bolso do paletó pois quem podia vestia paletó e gravata no dia de votar. Aí era só receber o envelope com as chapas (cédulas), enfiar na urna, tracejar a assinatura e lá estava o povão mostrando que quem manda aqui é ele, apanágio das democracias.

Pensam que esse negócio de produção, organização de eventos e coisas assim é de hoje em dia, mas quem acha isso não viu, por exemplo, a administração dos sapatos. Alguns eleitores importantes ganhavam sapatos, se bem que nem sempre do número certo, porque todo mundo sabe que concorrência pública é na base do preço e do cadê-o-meu. E a organização para o revezamento dos outros sapatos e adereços, até camisas e vestidos? Eram cronogramas complicadíssimos, controlados por voluntários zelosos e enérgicos. Para não falar no pessoal do transporte. “Tou com duas carroça de eleitô atolada na rodage de Amorêra faze dois dia”, comunicavam à central de meu avô, que se desdobrava, pois não se perdia nem uma carroça de eleitores assim, quanto mais duas. Em Sergipe, cansei de ver brigas por causa de caminhões de eleitores que, seqüestrados por adversários políticos sem saber, assim como não sabiam ler os nomes nas chapas, votavam de qualquer jeito, já que estavam ali para isso. A democracia tem suas distorções e receio que, por esse Brasil afora, a História registre desvios e mais desvios de caminhões de eleitores.

Hoje, claro, é diferente, hoje tem até gente que nunca conheceu tempos sem eleições, ou com eleições estapafurdiamente montadas. Hoje votamos em urnas eletrônicas, ninguém desgruda da televisão no horário eleitoral, o que está se vendo aí é algo completamente diferente. O eleitor é consciente, bem informado. E acabou, por exemplo, a troca de favores, dinheiro ou empregos por votos, como qualquer um que acompanha o noticiário pode ver. É a festa, é a festa da democracia. O que interessa é que, como naquele tempo, quem continua mandando somos nós, o povo.