Cumprindo a sina

(João Ubaldo Ribeiro)

Alvíssaras, irmãs e irmãos, alvíssaras para todos os lados. Agradaria minha vaidade que fossem mais alvíssaras para mim do que para vocês, mas receio o contrário. São mais para mim, que hoje, depois de muito tempo, entro em férias e só volto daqui a quatro semanas. Desta vez pretendo dar o melhor de mim para não fazer nada, coisa difícil para quem se viciou em trabalhar. Não fazer nada requer estudo e experiência e talvez uma dose acentuada de fatores genéticos. Estou um pouco fora de forma, mas acredito que, com uma semana de recondicionamento intensivo, lá na ilha, posso almejar quem sabe uma menção honrosa, entre tantos conterrâneos ilustres em disputa. Quanto a vocês, melhores notícias ainda — um mês inteiro sem dar de cara comigo por estas bandas. Espero que gestos deste quilate sejam lembrados com gratidão no futuro, em que pese a ingratidão da vida.

Rupturas assim tão radicais, ainda que temporárias, deixam o sujeito meio filosófico. Conto as horas para chegar à minha santa terrinha, a Denodada Vila da Itaparica, ponta da grande ilha onde nasci (a maior ilha marítima do Brasil, fiquem sabendo os que até então ignoravam deploravelmente os fatos), onde minha vida, meu pensamento, meus sentimentos e até minha maneira de ver e falar mudam assim que chego, mistério que nunca entendi direito. Passei boa parte da infância na ilha, na casa de meus avós maternos e no meio da vastíssima parentela de todas as extrações. Mas não fui criado lá. Contudo, não sei por quê, é a terra que me prende, da qual nunca me esqueço, onde sempre me sinto bem, onde julgo entender coisas que em outros lugares não entenderia. É como se fosse um pedaço de minha consciência. Ou não, claro que isto é pretensioso. É, sim, como se eu fosse um pedacinho da consciência da ilha circulando pelo mundo; ela é que me faz, não eu a ela, naturalmente.

Por isso é sempre bom voltar e é sempre, com perdão pelo lugar-comum que, aliás, nem quero evitar, uma emoção renovada rever as águas veneráveis da Baía de Todos os Santos e começar a respirar o ar da ilha, enquanto nos aproximamos daquela costa de marés mansas, que já viram tanta coisa e tudo o que falam é pela boca de contadores de histórias fantasiosos como eu, que aprendi com os mais velhos, em sessões de narrativas, lembranças, lendas e invenções de enredo ou poesia. O mundo está mudando (“o mundo vai acabar” — digo invariavelmente aos amigos, quando encerro bilhetes ou e-mails, e alguns ficam um pouco irritados, mas é verdade, o mundo vai acabar) de forma desconcertante, talvez enlouquecedora no sentido mais profundo, mas lá ainda existe um lugar para mim. E esse lugar é ratificado aqui, pelos companheiros de barco que me lêem e que, apesar de nunca terem estado por aquelas bandas, sabem que são também de lá. É o lugar do contador de histórias, que sempre houve em toda parte.

Uma vez — já lembrei isto aqui, mas o Estatuto do Idoso deve ter um artigo que me autorize uma quota generosa de repetições — eu estava escrevendo um livrão, lá na ilha mesmo, e já estava ficando incapaz de manejar direito aquelas quase duas mil laudas de papel imundo de fita de máquina e carbono e ainda mais perturbado da idéia do que meu amigo Cuiúba dizia que eu era. E aí me queixei a um outro amigo de que aquilo era uma atividade absurda, lá estava eu escrevendo histórias sobre gente que nunca existira, descrevendo cenas que nunca testemunhara — que era aquilo tudo, por que eu não desistia e ia fazer algo sensato, como ser dentista ou abrir uma loja?

Ele me respondeu que deixasse de ser burro e pensasse que, desde que o mundo é mundo, desde que o homem aprendera a falar e conversar, muitíssimo antes de aprender a escrever, sempre houvera contadores de história. Gente que lembrava o que acontecera no passado e o transmitia aos mais novos. Gente que percebia em si e nos outros a angústia de uma vida sem lógica e sem explicação (absurda, diria até, mas cartas de leitores existencialistas para o editor, pelo amor de Deus) e ordenava, em histórias enfeitadas, inventadas ou falsamente organizadas, um mundo que, do contrário, não faria sentido. E até hoje, comentam os críticos menos temerosos de serem tidos como primários, leitor gosta de enredo porque enredo traz ordem à desordem e desinquieta um pouco a mente sempre perplexa.

Tem gente que pensa que volto lá a Itaparica para “pesquisar” histórias, tomar notas de acontecimentos reais para contá-los depois. Mas não é nada disso, não há pesquisa nenhuma desse tipo e nunca suportei fazer e guardar anotações. Até já tentei, mas nunca deu certo. Se há alguma pesquisa, esta é no sentido mais lato possível, é viver um dia depois do outro na minha terra, conversando com os poucos amigos de infância que ainda me restam e com outros, não tão antigos, mas igualmente preciosos. Não vou buscar nada de específico, não quero “subsídios”, só quero ouvir histórias quando são realmente interessantes, pelo simples prazer de ouvi-las, só quero ver ou rever aquilo que me dá vontade. Imagino que poderia chamar isso por outras designações todas as quais detesto, tais como “recarregar as baterias” ou — horror dos horrores — “resgatar a energia da terra no corpo e na mente”. Não, vou só passar quatro semanas lá. E depois voltar, para continuar a cumprir a sina de contador de histórias de minha tribo. Já está saindo uma história nova, no fundo velha como todas as outras, que até parece “acontecida” em outro país, talvez. Mas foi ali mesmo, naquela ilha e naquela baía que é de nós todos. A escrita está começada, sim, mas ainda não sei a história inteira, talvez saiba na volta. Se acertar, escrevo e conto a vocês. Todo mundo gosta ou até precisa de uma boa história, se a gente consegue contá-la direito.