Internação, corrente ou aposentadoria

(João Ubaldo Ribeiro)

No momento em que lhes escrevo, me encontro num estado emocional e psicológico deplorável, quiçá calamitoso. Sei que vocês (nem o governo, aleluia!) não têm nada com isso e minha revelação equivale mais ou menos à que, por exemplo, faria um ator de quinta categoria ou em surto psicótico, explicando à platéia, antes do espetáculo, que sua performance, naquele dia, será inferior à do elenco de um circo falido homiziado num arraial de Cobrobó. As vaias que recebesse seriam mais que merecidas e acredito que também farei jus a vaias (linchamento eu acho um pouco de exagero, embora, na conjuntura em que vivemos, até compreensível, todos andam muito tensos) e penso seriamente em não botar os pés fora de casa neste domingo, nem que seja no interesse de preservar minha mãe de referências desairosas, pela desdita de ter parido um filho como eu.

Estou escrevendo num laptop mesozóico, movido a corda, com uma fonte de energia adicional acionada a querosene e já sob a proteção do Estatuto do Idoso. Tive um pouco de dificuldade em arrumar querosene, mas descolei dois litros numa loja que vendia geladeiras fabricadas no início do século passado. E, ecologicamente consciente quanto ao uso de combustíveis produtores de poluição, também mandei montar um filtro para conter as emanações nocivas exaladas do meu instrumento de trabalho. Havia até escolhido um assunto para ocupar este espaço que hoje envergonhadamente avacalho, mas não consigo abordá-lo, porque, refletindo melhor (sic), devo estar também em surto e não tenho condição de falar sobre coisa nenhuma que não minha patética situação.

Os poucos heróis que persistem em ler-me há anos devem lembrar-se de minhas queixas quanto a computadores. De fato, todo mundo sabe que esses aparelhos freqüentemente se entregam a comportamentos exasperantes e que é prudente não ter martelos, marretas ou machados à mão, quando se usa um deles. Mas, na minha profissão, como agora em quase todas, com a possível exceção da de gari, não dá para escapar. E, na verdade, sempre exagerei um pouco, para ironizar os — perdão — computadólatras. Fui dos primeiros escritores brasileiros a usar computador para escrever e posso mesmo dizer que, não por inteligência ou aptidão, mas porque minha burrice alcança o grau dois numa escala que vai crescentemente a dez, a experiência acabou me conferindo uma certa habilidade em seu manejo.

Há algum tempo, meu computador principal funcionava bem, embora obsoleto, o que não quer dizer muito em informática, porque qualquer um deles já é obsoleto ao ser retirado da caixa da embalagem. Quebrava meu galho satisfatoriamente, tanto assim que passei longo tempo sem xingá-lo, nem privadamente nem em público, e somente uma vez quis jogá-lo pela janela, não o tendo feito por receio de machucar ou matar algum passante. Mas, recentemente, ele passou a insistir em apresentar umas falhazinhas levemente aporrinhantes e aí dei o mau passo: resolvi encomendar um novo e atravessei o Rubicão, só que, ao contrário de Júlio César (o imperador, não o jogador, apesar de mais famoso) comecei a tomar uma sova que estou tomando até agora e tudo indica que devo continuar tomando por ainda não sei quanto tempo, quem sabe o resto da vida.

Ele veio com tudo em cima, últimas novidades, dos programas aos componentes. Celebrei sua chegada e, em processo que redundou em humilhação, cometi a imprudência de gabar-me exuberantemente aos amigos. “Agora estou com um Rolls-Royce” era o mínimo que eu dizia, sem saber que o que tinha caído nas minhas mãos equivalia a um Rolex de cinqüenta reais, em camelô que não dá desconto. Desde o dia em que ele foi entregue, minha ocupação mudou. Deixei de ser escritor, o que, se pode representar um alívio para a literatura nacional, acarreta a desvantagem de eu não poder mais ganhar a vida e cogitar em pleitear uma vaga na Casa dos Artistas, com base na minha experiência pregressa de cantor de banheiro. Entre muitos outros cretinismos que me afligem, está o cronográfico, de maneira que não sei há quanto tempo dedico uma média de pelo menos dez horas diárias a tentar fazer o diabólico aparelho funcionar, mas deve ser coisa de pelo menos um mês. E com a agravante de que não fomos feitos um para o outro: ele é sádico e eu não sou masoquista. Tentei discutir o relacionamento, mas, como sabemos, isso não dá certo, pois algumas incompatibilidades não podem mesmo ser superadas. Volta e meia me vem a tentação de presenteá-lo a algum desafeto, mas me contenho a tempo, porque ninguém merece vingança tão cruel.

Não farei, Deus me guarde, seus olhos de penico e não vou pormenorizar o que tenho enfrentado, mas o sofrimento já me deve ter rendido alguns séculos, talvez milênios, de redução de estada no Purgatório. Consolo parco agora, mas deverei mudar de opinião assim que transpuser a catraca a que se refere meu amigo Toinho Sabacu, de quem lhes falei na semana passada. Todo dia ouço de alguém que isso vai passar e tudo será resolvido. Sim, com certeza, eis que tudo passa neste mundo, mas acho que eu passo antes. O último diagnóstico técnico que obtive foi que se trata de interferências sobrenaturais. Altamente científico, mas, como não disponho de ninguém do ramo, aceito indicações de rezadeiras, exorcistas, pais-de-santo e similares. Aceito também (vejam como é a vida, nunca pensei que usaria estas palavras) correntes de energia positiva das almas caridosas que se apiedarem. O que não impede a internação numa clínica psiquiátrica que já ocorre a meu alarmado médico, e/ou a aposentadoria definitiva. Ou mesmo adeus, mundo cruel.