Adeus, velho Chico

(João Ubaldo Ribeiro)

Já li várias vezes que os especialistas do governo têm completa certeza de que a planejada transposição das águas do Rio São Francisco vai funcionar e resolverá praticamente todos os problemas da região. Contudo, oponho modestos argumentos, alguns dos quais já expus em outras ocasiões, mas estou seguro de que muita gente não lembra, até porque nunca os juntei numa peça só, como espero fazer agora, pelo menos aproximadamente. Em primeiro lugar, não apenas eu mas muita gente desconfia um pouco das assertivas e informações do governo. Por exemplo, já de muito se anunciou o espetáculo do crescimento e o único crescimento que a maioria percebe é o dos impostos, juntamente com o das despesas oficiais, com destaque para mordomias e aparentadas. Mas deve ser má vontade nossa. Afinal, crescimento é crescimento e somente o pessoal do contra é que dá importância a pormenor tão irrelevante.

Em segundo lugar, opiniões técnicas estão longe de ser infalíveis. O rol é praticamente infinito, como, para citar um exemplo pitoresco sobre o qual li em algum almanaque, a preocupação de cientistas europeus, quando foi inventada a locomotiva. Muitos deles sustentavam que o ser humano não resistiria a velocidades superiores a uns trinta quilômetros por hora. Mas digamos que isso é folclore e lembremos a inesgotável mudança de convicções médicas, sobre as quais nos dão notícias conflitantes todo dia. Lembro um caso somente, que não é o do ovo, o da margarina, o do Vioxx, o do mertiolate antigo e mais centenas de outros. Há alguns anos, muitos recordarão, milhares e milhares de grávidas sentiram enjôos e quiseram tomar um remédio recomendado por outras que já tinham enfrentado o problema. Mas elas mesmas, ou maridos ou companheiros cuidadosos, devem ter decidido que o correto era consultar o médico, que certamente elogiou a decisão e, baseado em sólidos dados científicos, sempre incontestáveis, prescreveu a droga mais avançada então existente. E, convencido do indiscutível acerto da escolha, receitou Talidomida.

Então não se pode aceitar incondicionalmente a opinião dos especialistas, por mais competentes. E, na questão do São Francisco, há também muitos outros técnicos que dizem que não vai haver solução nenhuma e que inúmeras populações podem ser até bastante prejudicadas. Acho este último parecer um pouco aquém das vastas possibilidades que a nossa experiência de brasileiros leva a crer. Na minha, repito, modesta opinião, o que vai acontecer é que, se fizerem as obras, muita gente vai ganhar e/ou furtar dinheiro, como sempre, mas o pior é que o rio vai secar, duvido que não seque.

Uma das hipóteses que aventei é a de o Senhor Bom Deus, talvez movido por sua nacionalidade, ter chamado São Pedro e dito que, penalizado com as tropelias climáticas que nos apoquentam, havia decidido entregar o controle das chuvas ao governo. Melhor assim, agora a distribuição ficaria a cargo de órgãos oficiais especializados e o regime pluvial se orientaria pelo interesse coletivo. Perfeito, hem? Pois é. Criar-se-iam, naturalmente, o Ministério do Clima e a Comissão de Distribuição Pluviométrica Participativa, com quarenta membros indicados pelos partidos a serem agradados e custeada pela Contribuição Provisória (Permanente) sobre Movimentação Meteorológica, a ser descontada na folha de pagamento dos assalariados, tão suave-mente que eles nem iam sentir, como nem sentem os três ou quatro meses que trabalham por ano para entregar seus rendimentos ao governo.

Em seguida, viriam os planos, talvez no começo influenciados por questões relativamente menores. Torcidas de futebol numerosas certa-mente dariam um jeito para que não houvesse chuva em dias de jogos importantes e logo as outras exigiriam tratamento igual. Em breve, os fins de semana teriam que ser de bom tempo, pois imagino que é a preferência dos peladeiros e churrasqueiros do governo. E o negócio, como vocês podem muito bem imaginar até melhor que eu, que sou o autor da idéia original, ia gradualmente complicar-se, para, dentro de no máximo um ano denunciar-se a existência da caixa-preta das chuvas e de diversos casos de propinas e subornos para que chovesse ou não chovesse, em tais ou quais condições. E tudo transcorreria dentro da nossa normalidade, com a instituição de uma comissão parlamentar de inquérito que não ia dar em nada e a imprensa sendo responsabilizada, como de hábito, por chuvas, borrascas, temporais, estiagens, ciclones e demais ocorrências no setor. E eu apostaria qualquer coisa como, dentro de poucos anos, já depois da realização do sexto Recadastramento Nacional de Secos e Molhados, a Amazônia, por exemplo, já se rivalizaria com o Saara e, naturalmente, nas terras de quem desagradasse ao governo ou os coronéis do interior, não ia chover uma gota, a não ser, é claro, depois de adesão ao esquema dominante ou do pagamento de um estipêndio razoável ao funcionário encarregado.

Portanto, acho que o São Francisco vai secar. Mas, encarando as coisas pelo lado positivo, imaginemos a atração turística que será o sítio arqueológico criado pela extinção de um dos maiores rios do mundo. E, pelo lado mais positivo ainda, não vai ser feita transposição nenhuma, já que, se o governo não fez nada até hoje, não será agora que vai começar.

P.S.

Desculpem-me por prolongar-me, mas faz tempo que quero comentar o que se segue e temo perder a chance. É a respeito do que disse o dr. Severino sobre o Legislativo não ser supositório das medidas provisórias. Creio que ele bolostrocou a metáfora. Parece-me que os supositórios são na verdade as medidas provisórias e o Legislativo, bem, o Legislativo seria isso mesmo que vocês estão pensando.