Alegria, alegria

(João Ubaldo Ribeiro)

Pelo menos no dia e na hora em que escrevo, faz um lindo dia outonal, como espero que também neste domingo. Os ares parecem puros, o céu está azul e límpido e a orla da Baía de Guanabara, que fica aqui tão pertinho de onde eu moro, lá permanece em sua formosura esplendorosa e irrespondível. Devemos, portanto, estar felizes. Claro, a bela leitora (não é machismo ou discriminação, são hábitos de antanho, pois diz a lei que sou do tempo dos afonsinhos) e o inteligente leitor (idem) podem ser agnósticos ou ateus, mas também podem fingir por um momento que não são e pensar como de fato o Senhor Bom Deus caprichou ao nos dadivar a nossa terra — e não somente o Rio, é claro, mas tão grande parte de toda ela.

E nos deu tantas coisas mais que até piadas criamos sobre isso. Todo mundo conhece esta, mas eu a repito, estou amparado pelo Estatuto do Idoso. Durante a Criação, estava Deus dando tanto ao Brasil, que um anjo certamente argentino (desculpem, não estou encampando a nova babaquice binacional, que é ficarmos brigando, argentinos e brasileiros, ambos no caso estúpidos, preconceituosos e atrasados — estou somente querendo fazer uma gracinha da moda mesmo) reclamou da injustiça para com os demais países. No que Deus teria replicado que esperassem o povinho ordinário que Ele ia botar naquela terra magnífica.

Nós somos esse povinho. De modo geral, devemos reconhecer que a piada tem lá seu fundamento. Meu papagaio de Itaparica (vivia solto, eu não prendia nada, ele apenas morava lá em casa; não quero incorrer em crime inafiançável e passar cinco anos na cadeia, pois aqui no Brasil somos muito rigorosos, vejam só como todos os ladrões e falcatrueiros importantes estão por trás das grades e não mandando na gente) uma vez fez cocô de uma semente de mamão numa fresta do cimento do pátio e, no meio dessa frestinha, brotou um mamoeirão tão feraz que eu tinha trabalho para distribuir mamões entre os amigos, ninguém agüentava mais. Aqui há plantas que dão duas, três safras por ano. Na Europa, é dureza. Nascer, nascem, mas o sujeito praticamente tem de dormir com as plantas, para que elas não definhem por falta de algum dos inúmeros cuidados de que necessitam. E duas safras eles pensam que é mentira, quando a gente conta. Mas, mesmo assim, a pobreza aqui é grande, a miséria aumenta, o medo cresce.

A culpa, naturalmente, não é nossa. É da colonização portuguesa, essa desgraça que nos caiu sobre as cabeças, quando podíamos estar tão bem quanto o Suriname, colonizado pelos holandeses, Bangladesh, colonizada pelos ingleses, o Senegal, colonizado pelos franceses ou a Etiópia, colonizada pelos italianos. Ou poderíamos não ter sido descobertos pelos europeus e continuarmos com a nossa verdadeira identidade brutalmente invadida, que é a de índios, como constata quem quer que olhe para qualquer um de nós, pois brasileiro é tudo igual um ao outro, impressionante. E também é culpa dos americanos que, bem verdade, já foram uma nação menor, mais pobre e mais atrasada que a nossa, mas tiveram a sorte de contar com Errol Flynn, John Wayne, Gary Cooper e tantos e tantos outros, enquanto nós mal podemos ostentar um Lampião muito do fuleiro. E não esqueçamos tampouco os comunistas, que nunca exerceram poder político ou econômico por aqui, mas estragaram, com sua ideologia exótica, a flor dos cérebros de pelo menos umas três gerações.

Azar, azar, azar. Povo tão bom que nós somos, fomos arranjar, por exemplo, políticos abomináveis, como às vezes nos parecem ser quase todos eles. Claro, é porque não são brasileiros, estão aqui para roubar a gente e ver a gente se lascar mesmo. De onde será que terão saído esses desgraçados? É um mistério profundo que, se resolvermos, extirparemos de vez nossos problemas. É só trocar esses políticos saídos não se sabe de onde por brasileiros iguais a nós, legítimos, honestos, trabalhadores, aplicados, sérios e, além disso, de grande cordialidade e extraordinária musicalidade. Desmascaremos e deportemos esses ETs, juntamente com funcionários (perdão, servidores) larápios, inúteis ou incompetentes, que tampouco são brasileiros, maus policiais, prefeitos corruptos, assaltantes, traficantes e assim por diante. O Brasil é nosso, vamos tirá-lo das mãos desse pessoal que não tem nada a ver conosco, nem foi criado como nós, nas mesmas cidades, comendo a mesma comida, falando a mesma língua e partilhando a mesma História.

O brasileiro é como eu ou você. Já não digo como o presidente, pois este nem pecado tem, mas como eu, você ou o vizinho. O povo é bom e honesto. Como demonstrou um programa para auxiliar famílias pobres do interior. Os pobres não receberam a ajuda, que ficou com as famílias remediadas ou ricas mesmo. E, quando alguém que não precisa recusa essa ajuda, a gente dá uma festa e bota no jornal, apesar de ser acontecimento tão trivial. Não somos nós que fazemos gatos para furtar energia elétrica ou água, ricos ou pobres. Não mentimos nem mesmo quando respondemos àquelas enquetes “que você está lendo?”, onde se nota que entre nós pouca gente lê, todo mundo relê: “Estou relendo Proust.” “Estou relendo Dante.” Assim como nenhum de nós jamais deu a cervejinha do guarda, nem o guarda jamais achacou ninguém. Aqui não existe o PF, o famoso “por fora”, para ajudar uma tramitação. Nunca furamos fila ou adotamos o pistolão, Deus nos guarde e, quando eu era examinador nos vestibulares antigos, havia diversos candidatos que não traziam um cartão de recomendação. Até hoje, quando tomo parte no júri de um concurso, só recebo pedidos de favorecimento em menos de 90 por cento dos casos, percentual ridículo. Que dia lindo, não? Mó num pá tropi, abençoá por Dê.