— Posso chamar o senhor de "você", não posso?
— Claro que pode, acho que não sou assim tão mais velho do que você. E, afinal, já nos falamos várias vezes, neste boteco, podemos dizer que já somos velhos conhecidos, apesar de nunca termos conversado muito.
— É, nunca conversamos muito, mas é acanhamento.
— Que bobagem, acanhamento de quê?
— É que eu posso dar uma escorregada e cometer um erro de português.
— Fica muito chato cometer um erro de português, conversando com um acadêmico.
— Fica chato nada, acadêmico também comete erros de português.
— Ha-ha, o senhor é muito modesto. Aliás, é o que eu mais admiro no senhor, a sua modéstia. Um acadêmico assim, de bermuda, falando com todo mundo, realmente o senhor é muito modesto, muito simples.
— É o meu jeito de ser. Mas muitos outros acadêmicos são também simples, não é uma questão de ser acadêmico, é uma questão de temperamento pessoal.
— Nada, nada, o senhor é muito modesto, muito simples.
— Está bem, mas lá vai você me chamando de "senhor" novamente.
— É verdade, tenho dificuldade em dizer "você". Minha senhora mesmo já me advertiu. Acadêmico a pessoa deve tratar com respeito.
— Mas me chamar de "você" não é desrespeito. Acadêmico não é marciano, é gente como você, deve ser tratado como se trata qualquer pessoa.
— Ha-ha-ha-há! Essa foi boa, muito boa mesmo! Só um acadêmico para vir com uma tirada dessas, genial! Acadêmico não é marciano, genial! Vou me lembrar dessa para contar a minha senhora. Não é marci... Genial!
— Muito obrigado, mas...
— O senhor é muito modesto, muito modesto mesmo, muito simples. Foi por isso que eu me aproximei do senhor, assim tomando esta ousadia.
— Ousadia nada, eu...
— É uma ousadia, sim, quem sou eu para ficar puxando papo com um acadêmico? Se o senhor não fosse tão simples assim, eu nem chegava perto, conheço meu lugar. Mas aí vejo sempre o senhor aqui, batendo papo normal com todo mundo, aí resolvi me aproximar também. É que eu tenho muita curiosidade sobre a Academia, quem chega lá já chegou a tudo, é ou não é?
— Não é bem assim. É uma honraria, mas também...
— Modesto, modestíssimo, muito simples, até mais simples do que eu imaginava. Depois de chegar na Academia... Na Academia, não, à Academia, desculpe o erro de português, eu sei a regra, mas a força do hábito... Depois de chegar à Academia, o camarada já chegou a tudo, isso ninguém pode negar. Eu tenho muita curiosidade sobre a Academia. Pode ser até uma bobagem minha, são curiosidades talvez bobas, mas há umas coisas que eu gostaria de saber. Posso perguntar?
— Mas é claro, só não respondo se não souber.
— Mas é muito modesto, muito simples mesmo! Um acadêmico dizendo "se eu não souber", ha-ha, vou guardar esta também, o senhor realmente é uma grande figura. Mas vou fazer minha primeira pergunta. Pode parecer besteira — desculpe, bobagem —, mas eu queria saber uma coisa: de que é o chá que os senhores tomam? Só ouço falar no chá, mas tinha uma vontade danada de saber de quê.
— Você acredita que eu não sei? Eu não tomo o chá.
— O senhor não toma o chá? Quer dizer que é tudo invenção, não tem o chá da Academia?
— Tem, tem. Mas eu não gosto de chá, não tomo o chá.
— Essa eu nunca esperei ouvir, vivendo e aprendendo! Eu tinha certeza de que o chá era obrigatório. Quer dizer que o senhor comparece, os outros tomam chá e o senhor não toma nada.
— Tomo, tomo. Fazem uma cajuadazinha para mim.
— Cajuada! Cajuada, cajuada mesmo? Mas é muito simples, muito modesto mesmo! Todo mundo ali tomando chá de dedinho levantado e o senhor tomando cajuada! Mas é muito simples, mesmo, essa eu também vou guardar. Cajuada, nunca imaginei, o sujeito na Academia, tomando cajuada, nunca imaginei.
— É, de fato. Mas é o que acontece. Eu tomo cajuada.
— Eu sabia! Quer dizer, não sabia, mas de certa forma sabia. Eu disse a minha senhora, quando o senhor foi eleito: esse homem vai revolucionar a Academia! Agora já vi. Tiveram que respeitar suas raízes nordestinas: cajuada!
— Não, há muitos outros nordestinos na Academia. Eu apenas...
— Apenas, não, apenas, não, é muita modéstia, muita simplicidade. Pode haver muitos outros nordestinos na Academia, mas foi o senhor que chegou lá e falou: nada de chá, comigo é na cajuada. Tem que ter peito, essa eu não vou nunca esquecer. E ainda está pouco ligando para as manchas. Cajuada mancha prata, o senhor sabe.
— Não, não sabia. Mas não tem prata nenhuma, é em copo de vidro mesmo.
— Não, não, desta vez o senhor está enganado. Copo de vidro, não. Ou é prata ou é cristal. Se não é prata, é cristal. É porque o senhor é muito simples, não repara nessas coisas. Mas, de próxima vez, observe se não é cristal. Não é possível um acadêmico ficar bebendo em copo de vidro. Procure observar, depois o senhor me diz se não é cristal.
— Está certo. Mas você mesmo pode verificar isso, pode aparecer na Academia no dia do chá e verificar.
— Eu aparecer? E pode aparecer assim qualquer um na Academia?
— Claro que pode. Apareça lá, diga que veio fazer uma visita e com certeza vai ser bem recebido.
— Mas é muita simplicidade mesmo, dizendo isso só para me agradar. Eu vou fingir que acredito, para não estragar sua cortesia, mas aparecer não apareço, ia ter um desmaio. E é durante ou depois do chá que os imortais se sentam de fardão para falar francês e corrigir o dicionário?
— Não, a gente não vai de fardão. E corrigir dicionário...
— Não vão de fardão? Quer dizer que não foi só na cajuada que o senhor revolucionou a Academia! Também aboliu o fardão, mas é demais, é muita simplicidade, minha senhora vai ficar de queixo cm'do! Qualquer dia o senhor chega lá de bermuda, impondo sua autenticidade! É de homens como o senhor que o Brasil precisa! Essa eu também vou guardar! De bermuda, corrigindo altos dicionários, é demais, é muita simplicidade!
Esta crônica foi publicada no livro "O Conselheiro Come", Editora Nova Fronteira, 2000.