TEORIA GERAL DO ESTADO

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Conflito de Jurisdições durante o Medievo

 

            A Idade Média pode ser representada no campo da política pelo conflito entre os poderes temporal e espiritual. De um lado, o Papa, representando a Igreja Católica e exercendo o poder espiritual; do outro, Reis ou Imperadores que se destacavam dos demais e exercendo o poder temporal pretendiam estender seus domínios por toda a Europa ou pelo menos ampliar a extensão deste poder.

 

            Em dado momento histórico o Imperador interferia nos assuntos da Igreja, em outro momento o Papa interferia nas questões políticas; ora em conflito, ora em acomodação, outras vezes em submissão de um poder ao outro.

 

Foram quase mil anos do nascimento da Igreja Católica até Dante. Começou com a submissão da Igreja ao Imperador (antes mesmo do Bispo de Roma ser o chefe da Igreja) e terminou, na época de Dante, com as pretensões de Bonifácio VIII[1] em submeter o poder temporal ao poder espiritual. O que não implica dizer que as relações entre Igreja e Estado foram progressivamente o aumento do poder do Papa e a diminuição do poder dos Reis e Imperadores. Não, o poder do Papa não foi crescente, na verdade foi sempre decorrência da ausência de governante temporal forte, como veremos a seguir.

 

A IGREJA E O IMPÉRIO ROMANO

 

            O Edito de Nantes elevou o cristianismo à condição de religião oficial do Estado. O Império Romano ainda era suficientemente forte e seus domínios se estendiam por toda a Europa (veremos que durante a Idade Média, cristandade e Europa reduzia-se um ao outro, praticamente). O poder espiritual confundia-se com o poder temporal (a religião confundia-se com a moral, com o direito e com a política) ambos sob o controle do Imperador.

 

            Durante o Império Romano, nos primeiros anos do cristianismo, a Igreja Católica não possuía a organização que vemos hoje, muito menos o poder que teve durante o Medievo. A própria figura do chefe único da Igreja só surgiu no século V. Um exemplo do poder imperial sobre a religião (especificamente sobre a Igreja) é que foi o Imperador no século IV quem convocou o primeiro concílio da Igreja (em 380), também foi por ordem imperial que os outros três Patriarcas[2] da Igreja submeteram-se ao Patriarca de Roma (em 445).[3]

 

DECLÍNIO DO IMPÉRIO ROMANO E A DOUTRINA DE GELÁSIO I

 

            O século V foi crucial para a Igreja e para o Império Romano do Ocidente. Este agonizava seus últimos dias, que teve como marco da deposição do último imperador romano (em 476), cujo poder era só a sombra daquele dos seus antecessores; a instabilidade da Europa ocidental, sem outro poder forte que substituísse o poder imperial fez surgir um vácuo de poder, foi a Igreja das poucas instituições que permaneceu intacta e que passou a ocupar este vácuo.

 

            Ainda no século V, o Papa Gelásio I[4] formulou a doutrina dos dois poderes. Consistia na separação entre as esferas temporal e espiritual, cabendo o exercício da primeira ao Estado (Reis e Imperadores) e o exercício do poder espiritual à Igreja, chefiada pelo Papa.

 

            Justificava que Jesus separou as duas autoridades - espiritual e temporal, conferindo à cada uma funções, deveres e jurisdições diversos; ambos de origem divina. Permanecia, porém, a dificuldade de estabelecer quais assuntos eram da esfera espiritual e quais eram os da esfera temporal.

 

            Gelásio I fundamentava sua doutrina na interpretação da Bíblia (por diversas passagens que veremos nos capítulos seguintes). A doutrina de Gelásio I, que serviu para dar autonomia ao poder do Papa, também foi usada, no tempo de Dante, para obstruir as aspirações de interferência do Papa nos assuntos temporais.

 

            No tempo de Gelásio I, ainda permanecia a submissão da Igreja ao Estado, mas marca o início do fortalecimento do poder papal, sob a justificativa da diferenciação da ordem espiritual da ordem temporal (que seja, entre Religião e Direito).

 

CONFLITO ENTRE GREGÓRIO VII E HENRIQUE IV

 

            No período que segue a divulgação da doutrina de Gelásio I, a Europa ocidental sofreu profundas transformações em todas as áreas. Especialmente na política e na economia.

 

            Do esfacelamento do Império Romano, vários reinos (francos, godos, visigodos, etc.) vieram substituí-lo. Ao contrário do forte e centralizado poder do Imperador Romano, nos reinos feudais o poder estava descentralizado, ou melhor, fragmentado, a partir das relações de suserania e vassalagem. O território de um Reino estava dividido em porções menores, os feudos. Eram os donos dos feudos (Senhores Feudais - Condes, Duques, etc.) quem detinham de fato o poder. Porém, como este poder reduzia-se ao próprio feudo, e como quase não havia relações entre os feudos, contribuía ainda mais para o enfraquecimento do poder.

 

            A atividade econômica principal deixou de ser o comércio e voltou a ser a agricultura. A terra passou a ser o bem econômico de maior valor e a vida social deixou os centros urbanos para se concentrar na zona rural. Para isso contribuiu muito o clima de insegurança e instabilidade pelo qual viveu a Europa ocidental logo após a queda do Império Romano.

 

            Em dados momentos um dos reinos emergia poderoso, mais pelo carisma do novo monarca que pela forma de organização do poder estatal. Tão logo este monarca desaparecia, não surgindo outro com os mesmo atributos para substituí-lo, aquele reino forte voltava a ser um aglomerado de feudos.

 

            O poder do Papa sempre crescia nesta ausência de poder.

 

            No século XI, a Europa presenciou novo conflito entre o poder temporal e o poder espiritual. Desta vez, entre o Papa Gregório VII[5] e o Imperador Henrique IV[6].

 

            O poder da Igreja já estava fortalecido. O maior Estado no final do século XI era o Sacro Império Romano Germânico (pretensiosamente sucessor do Império Romano antigo, mas com nenhuma semelhança quanto a organização e extensão do poder; era uma organização feudal).

 

            A Questão das Investiduras foi o pretexto para iniciar este conflito, no qual o Papa ganhou mais do que perdeu.

 

            Em todo a Europa ocidental, os reis e imperadores permaneciam com o poder de nomear os bispos. Os Bispos não exerciam só o poder espiritual, eram senhores feudais como qualquer leigo, concentrando, no entanto, o poder espiritual e temporal. O poder temporal exercido pelos Bispos justificava sua nomeação pelos reis e imperadores. Esta situação, por sua vez, privava o clero de independência e mantinha a submissão da Igreja ao Estado.

 

            Esta mistura entre as duas esferas de poder levou a um relaxamento dos costumes do clero, que se tornam evidentes com a venda de indulgências e a recusa do celibato pelos sacerdotes.

 

            Gregório VII era um Papa místico e devotado à reforma espiritual do clero. Assim, condenou a investidura concedida pelos reis e imperadores; de forma que somente o Papa poderia fazê-lo agora.

 

            O Imperador do Sacro Império Romano Germânico, Henrique IV, único com força para tanto, reagiu. Aceitar perder o poder de investidura implicava não só perder o poder de interferir nos assuntos espirituais, mas principalmente não poder escolher os titulares dos feudos eclesiásticos.

 

            Henrique IV não cumpriu a proibição do Papa; este decretou o interdito, isto é, privou a população do Sacro Império dos ofícios e sacramentos cristãos. Henrique IV reagiu novamente, considerando o Papa deposto e ameaçando com a força militar invadir a Itália e impor um novo Papa.

 

            O conflito só foi resolvido, em parte, com a Concordata de Worms - quando o Sacro Império era governado por Henrique V e a Igreja pelo Papa Calixto II - pela qual o Papa faria a investidura espiritual e o Imperador a investidura temporal (isto é, para os feudos eclesiásticos).

 

            Este conflito demonstrou o poder do Papa, que apesar de não possuir as armas para uma guerra bélica, possuía armas espirituais com efeito ainda mais devastador.

 

CONFLITO ENTRE BONIFÁCIO VIII E FELIPE, O BELO

 

            O Papado de Bonifácio VIII marca o apogeu do poder do Papa e o início do seu declínio. Este Papa, contemporâneo de Dante, foi o modelo de Papa do Renascimento, ávido pelo poder, pretendeu submeter o poder temporal ao Papa.

 

            É importante entender que esta submissão de um poder ao outro não consiste em avocar uma jurisdição à outra. Mas, que dado que uma esfera seja mais importante que a outra, cabe a esta determinar onde começa e onde termina cada jurisdição. E havendo conflito de jurisdições, o poder espiritual suplantará o poder temporal.

 

            Outro detalhe que pode causar equívocos é que era pacífico no final da Idade Média a existência das duas esferas de poder independentes. A originalidade de Dante, e daí vêm o seu mérito, é que até ele a fundamentação deste postulado era com base em textos bíblicos; Dante construiu argumentação filosófica (dentro dos parâmetros da escolástica) para justificar sua tese.

 

            Voltando à Bonifácio VIII. Este Papa faz editar a famosa Bula Unam Sanctum[7], pela qual reivindica o direito de suserania mundial do papado - "a Igreja tem só uma cabeça, Cristo, e um só vigário, Pedro e seus sucessores; que duas espadas pertencem à Igreja, uma pelo sacerdote, a outra pelo rei, mas por mandato do sacerdote"[8].

 

            Com base nesta doutrina de superioridade do poder espiritual sobre o temporal, Bonifácio VIII exigiu que não fossem cobrados tributos da Igreja e do clero. Enfraquecido o Sacro Império, foi o Rei da França, Felipe, o Belo[9] quem fez frente ao poder do Papa.

 

            Este conflito teve desdobramentos até o Grande Cisma quando foram eleitos dois Papas, um em Avignon outro em Roma (isto em 1378, e que só terminaria em 1417).

 

RESUMO

 

            Dante viveu e formulou sua doutrina no final da Idade Média, poucos anos antes do Grande Cisma  e do conflito entre Felipe, o Belo e Bonifácio VIII. Porém, como veremos a seguir, sofreu na própria pele a interferência de Bonifácio VIII na política dos Estados italianos.

 

            As relações entre poder temporal e poder espiritual, refletem as relações entre os titulares destes poderes - o Papa e os Reis e Imperadores. Apesar de não possuir força material - seu território era pequeno e não possuía força militar - a Igreja era a mais importante instituição do medievo, unificava toda a Europa porque todos eram cristãos e todos os cristãos submetiam-se ao Papa. O poder temporal por sua vez estava enfraquecido, primeiro porque não constituía, como o Império Romano, um só Estado sobre toda a cristandade, muito pelo contrário, nos pequenos Estados feudais o poder era fragmentado; residindo o verdadeiro poder nos Senhores Feudais e não nos reis e imperadores.

 

            Os conflitos entre Igreja e Estado que relatamos, apesar da ordem crescente de aumento de poder do Papa, não pode ser visto como regra. O poder do Papa crescia quando não havia um Rei ou Imperador forte. Tão logo esta liderança surgia, reduzia-se também a capacidade de interferência da Igreja sobre os assuntos políticos.

 

 


 

[1] Bonifácio VIII (1217-1303) - Bento Caetano. Papa da famosa Bula Unam Sancton, de 1302.

[2] No século V, o poder na Igreja Católica estava dividido entre quatro Patriarcas: de Roma, de Antioquia, de Alexandria e de Jerusalém

[3] Era o Imperador Romano que escolhia o bispo de Roma, o Papa, portanto. Cf. José Jobson Arruda. História Antiga e Medieval. p. 345.

[4] Gelásio I (? - ? ) - Papa.

[5] Gregório VII - Papa entre 1073 e 1085.

[6] Henrique IV - rei alemão e imperador do Sacro Império Romano Germânico.

[7] Esta Bula foi, possivelmente, redigida por Egídio Romano. Cf. Josep-Ignasi. La Ciência Política de Tomás de Aquino. Em: Luis Alberto de Boni. Idade Média: Ética e Poder. p. 246.

[8] Cf. Juan Llambas Azevedo. Prólogo - la filosofia politica de Dante y sus antecedentes medievales. p. 28.

[9] Felipe, o Belo (1268-1314) - rei Felipe IV da França.