TEORIA GERAL DO ESTADO

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SOBRE O OBJETO DA TEORIA GERAL DO ESTADO

Considerações sobre a autonomia científica da Teoria Geral do Estado

 

            A Teoria Geral do Estado é uma ciência nova, os estudos sobre o Estado remontam, no entanto, à antigüidade.[1] O Estado (ou as formas de sociedades políticas que o antecederam) sempre foram objeto de estudo rigoroso (e mesmo científico em uma acepção ampla): a República de Platão e a Política de Aristóteles são manuais sobre a política, sobre a polis (um predecessor do Estado moderno); mas a idéia da organização de uma ciência especificamente para estudar o Estado surgiu apenas no final do século XIX e somente em meados do século XX consolidou-se como ciência.[2] Jellinek registra que já no final do século XVIII Schlözer fazia a primeira referência a uma Teoria Geral do Estado;[3] que só foi  consolidada pelo próprio Jellinek na sua Allgemeine Staatshehre de 1900,[4] cuja exata tradução significa Teoria ou Doutrina Geral do Estado.[5] Foi a influência germânica que universalizou esta expressão.[6]

 

            Ainda hoje, no entanto, críticos da TGE negam sua autonomia científica. Distinguimos três grupos de críticos: a) o primeiro grupo simplesmente nega que o Estado, dado sua complexidade, possa ser objeto de uma única ciência; b) o segundo grupo, reconhece a autonomia meramente didática da TGE, incluindo-a como disciplina de outra ciência; e c) o terceiro grupo defende que a TGE tem o mesmo objeto e método que outra ciência já constituída, portanto, confundindo-se com ela.

 

            Hans Kelsen,[7] para quem o direito e o Estado são "duas faces da mesma moeda", estuda a TGE como uma disciplina jurídica; Hermann Heller[8] trata a TGE como uma disciplina sociológica; no Brasil, Sahid Maluf[9] considera a TGE como parte do Direito Constitucional e sua estrutura teórica; já Paulo Bonavides[10] prefere denominar seu manual de TGE de Ciência Política. O debate sobre a autonomia científica da TGE chegou mesmo a ser normatizada pelo direito, em recente portaria do Ministério da Educação,[11] regulamentando os cursos jurídicos no Brasil, é considerada obrigatória a TGE[12] nos currículos dos cursos de direito, mas como conteúdo da Ciência Política, não como disciplina jurídica ou como ciência autônoma.[13] Até mesmo a introdução da TGE nos currículos jurídicos, em 1940,[14] foi obra de interferência governamental, através do Decreto-lei n. 2.639.[15]

 

            Jellinek foi um dos primeiros autores a demonstrar que a TGE não pode constituir uma disciplina subordinada a nenhuma ciência; o jurista alemão identificou que o Estado é um objeto complexo e que, portanto, seu estudo requer uma abordagem interdisciplinar; os dois ângulos do estudo da TGE para Jellinek são o direito e a sociologia.[16]

 

            Em 1925, Hans Kelsen publicou o seu Compêndio de Teoria Geral do Estado, onde pretende purificar a TGE de qualquer elemento não jurídico, inclusive da sociologia. Negar, portanto, a autonomia científica à TGE, significava para Kelsen proceder a redução sistemática do Estado ao direito;[17] a TGE para o jurista austríaco consistia no estudo da organização constitucional do Estado moderno mediante uma tipificação lograda por generalizações empíricas e relativa dos rasgos comuns aos ordenamentos jurídicos dos Estados modernos particulares à civilização ocidental.[18]

 

            Logo depois de Kelsen, o sociólogo alemão Hermann Heller publicou sua Teoria do Estado, onde destaca apenas os elementos sociológicos. Para Heller, a teoria do estado se propõe a investigar a específica realidade da vida estatal que nos rodeia; aspira compreender o Estado na sua estrutura e função atuais, seu devenir histórico e as tendências de sua evolução.[19]

 

            Coube ao italiano Alessandro Gropalli, na sua Doutrina do Estado, publicada em 1939, consolidar as bases da TGE como uma ciência autônoma, com objeto complexo e método sintético. Retoma a idéia de Jellinek de que o Estado exige o estudo por várias abordagens, mas acrescenta aos dois aspectos ressaltados pelo jurista alemão - o direito e a sociologia - o aspecto político (entenda-se nos termos mais atuais, filosofia política).

 

Para Gropalli, a Teoria Geral do Estado (ou Doutrina do Estado como prefere): "não constitui uma simples coordenação formal ou justaposição de conceitos gerais, mas ao contrário, uma ciência autônoma, desde que exprime em uma síntese superior, a unidade de ciências sociais, jurídicas e políticas especiais".[20]

 

            Gropalli divide a TGE em três disciplinas didáticas: a) a teoria sociológica do Estado (que estuda a gênese e evolução do Estado), b) a teoria jurídica do Estado (que estuda organização e personificação do Estado), e c) a teoria significativa do Estado (que estuda os fundamentos e os fins do Estado).[21] A rigor, a teoria das formas de governo está inserida na teoria jurídica do Estado, mas a natureza da TGE faz com que estas três disciplinas sejam interdependentes, influenciando-se mutuamente.

 

            Para Gropalli, nenhuma outra ciência poderá estudar o Estado de maneira satisfatória, é a própria visão unilateral de um objeto que é por sua natureza complexo, só a TGE pode estudar o Estado de "maneira integral e unitária".[22]

 

            No Brasil, o respeitado trabalho do Prof. Lourival Vilanova, confirma a autonomia científica da TGE, mas retoma a visão dualista de Jellinek: “a dualidade que encontramos no fato do Estado é a dualidade de todo objeto cultural”.[23]

 

            Vilanova ainda mantém a preocupação de Jellinek e de Kelsen do rigor científico, a começar pela delimitação do objeto e do método; também segue os dois juristas germânicos na idéia de eliminar os postulados filosófico-políticos da ciência,[24] afastando a terceira teoria de Gropalli que tem um claro apego filosófico.

 

            Consideramos a Teoria Geral do Estado como uma ciência autônoma porque possui objeto e métodos próprios e adequados para o estudo do fenômeno estatal, mas não seguiremos completamente a orientação do mestre pernambucano. As três disciplinas da TGE de Gropalli parecem mais adequadas para o estudo do Estado, Giovanni Sartori e Norberto Bobbio, tratando da política no sentido amplo e não somente da política estatal, reforçam a necessidade de inserir na análise científica também a abordagem prescritiva (ou normativa como muitos preferem, embora tenhamos reservado esta expressão para indicar o dever-ser jurídico e não para o dever-ser teleológico ou axiológico).

 

            Assim, reservamos a expressão “ciência política”, em um sentido restrito, como fez Pinto Ferreira, para indicar a parte da TGE que estuda apenas os fins do Estado e a arte de alcançar esses fins,[25] e em uma acepção ampla para abranger não só o Estado, mas outras dimensões políticas.

 

            Os assuntos do Estado, portanto, serão observados por três ângulos diferentes e simultâneos, o ângulo jurídico, o ângulo sociológico e o ângulo filosófico (nos referimos à filosofia política).[26]

 

            O método está intimamente relacionado com o objeto escolhido e com o fim perseguido. A TGE como uma ciência ao mesmo tempo social, jurídica e filosófica (cada uma delas utilizando métodos diferentes) deve ter uma metodologia compatível e adequada com sua natureza complexa.[27]

 

            Gropalli relaciona três métodos integrados com as três disciplinas da TGE: a) o método indutivo (da análise de fatos particulares eleva-se à determinadas leis gerais, mediante observação, comparação e abstração), b) o método dedutivo (que parte da premissa geral e extrai, por silogismo, as conseqüências particulares), e c) o método analógico (que vai do particular ao particular - o que há em comum).[28]

 

Para Carlos Fayt, os aspectos sociológico, jurídico e político da vida do Estado devem ser investigados pelos métodos próprios a cada um deles - a) sociológico (métodos da história e da sociologia), b) jurídico (método jurídico) e c) político (método de compreensão, análise e síntese).[29]

 

Deve-se lembrar ainda que a TGE não é uma disciplina enciclopédica, apenas catalogando informações das suas três disciplinas, cada uma aplicando o seu método, deve haver uma associação permanente de métodos, buscando uma síntese das três abordagens.[30]

 


 

[1] "La doctrina del Estado es una de las disciplinas más antigas". Cf. Jellinek, George. Teoria general del Estado, p. 39.

[2] "Só no século XX (...) é que a TGE começa a tomar corpo como ciência autônoma". Cf. Queiroz, João José de. Posição e conteúdo da TGE, p. 35.

[3] Citado por Menezes, Aderson. Teoria Geral do Estado, p. 5. "El holandés Ulric Huber, en su libro sobre Nova disciplina iuris publici universalis, esfuérzase por separar el Estado de la Política. Huber no es el fundador de la doctrina, pero sí del nombre 'Teoria General del Estado'". Cf. Jellinek, George. Teoria general del Estado, p. 43. A publicação de Huber foi em 1672. Cf. Dantas, Ivo. Teoria do Estado, p. 3.

[4] Cf. Dalari, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado, p. 4.

[5] Cf. Menezes, Aderson. Teoria Geral do Estado, p. 7.

[6] Para José Ribas Vieira, a TGE surgiu na Alemanha para (a) justificar a existência do Estado e (b) reforçar uma idéia de neutralidade e de interesse geral do Estado. E conclui que o Estado “apresenta na sua fundamentação teórica uma formação autoritária”. Cf. Vieira, José Ribas. Introdução à teoria do Estado, p. 10.

[7] Cf. Kelsen, Hans. Teoria General del Estado; Compendio de Teoria General del Estado; Teoria Geral do Direito e do Estado.

[8] Cf. Heller, Hermann. Teoria del Estado.

[9] Cf. Maluf, Sahid. Direito Constitucional, p. 35. Neste sentido: "os tratadistas franceses, via de regra, continuam a considerar a Teoria Geral do Estado como complemento teórico do Direito Constitucional ou como sua parte geral". Cf. Azambuja, Darcy. Teoria geral do Estado, p. 11.

[10] Cf. Bonavides, Paulo. Ciência política.

[11] Portaria n. 1.886, de 30 de dezembro de 1994.

[12] Precisamente "Teoria do Estado".

[13] No art. 1º da Resolução CFE n. 03/72, de 25 de fevereiro de 1972, previa-se a Teoria do Estado (juntamente com Sistema Constitucional Brasileiro) como conteúdo da matéria Direito Constitucional. No art. 6º da Portaria n. 1886, de 30 de dezembro de 1994, previa-se a Teoria do Estado como conteúdo da Ciência Política. Paulo Luiz Neto Lobo procura justificar o deslocamento da Teoria do Estado do Direito Constitucional para a Ciência Política: “com a Ciência Política pretende-se ir mais longe que o estudo clássico da Teoria do Estado, embora este continue. Interessa ao estudante de Direito que amplie sua compreensão aos fenômenos e estruturas políticas, à teoria do poder (e não apenas do poder político formal), à deontologia política)". Cf. Lôbo, Paulo Luiz Neto. O novo conteúdo mínimo dos cursos jurídicos. In: Ensino Jurídico OAB: novas diretrizes curriculares, p. 11. Neste sentido, José Ribas Vieira: “os cursos de Direito em nosso país mantiveram essa disciplina de TGE até 1973. Nesse ano, entra em vigor a reforma curricular e a TGE desaparece. Ela passa a ser incluída na disciplina de Direito Constitucional I. (...) A Portaria MEC nº 1886/94 (...) introduz a Teoria do Estado (não a clássica Teoria Geral do Estado de origem alemã). Essa disciplina terá de ser lecionado separadamente ou vinculada à Ciência Política, devendo compreender o Estado dentro de um perfil necessariamente interdisciplinar, independentemente de seu formato de disciplina”. Cf. Vieira, José Ribas. Introdução à Teoria do Estado, p. 14. A crise do ensino do Direito era percebida como crise epistemológica, com um processo de isolacionismo pernicioso do Direito; a proposta de proporcionar uma formação humanística que pudesse dotar o estudante de uma compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico acarretou no “resgate” de algumas disciplinas que tinham sido deixadas fora do currículo obrigatório da Resolução 03/72.

[14] Cf. Bonavides, Paulo. Ciência Política, p. 44.

[15] A fim de obter uma interpretação favorável à Constituição do Estado Novo nos cursos de Direito, o referido decreto-lei desdobrou a antiga disciplina Direito Público Constitucional em duas - Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, os antigos mestres da disciplina extinta foram transferidos para a cátedra de TGE, ficando livre para nomeação presidencial as novas vagas de professor de Direito Constitucional para as faculdades federais. Cf. Queiroz, João José de. Posição e conteúdo da Teoria Geral do Estado, p. 11; no mesmo sentido: Bonavides, Paulo. Ciência Política, pp. 44-5. Sobre a TGE no Estado Novo, cf. Vieira, José Ribas. Introdução à teoria do Estado, p. 14.

[16] "La doctrina general del Estado há de investigar a èste su plenitude y singularmente atendiendo a dos órdenes principales de fenómenos que corresponden a los dos puntos de vista básicos para esta ciencia: el Estado es, de un lado, una construcción social y de outro, una institución jurídica". Cf. Jellinek, George. Teoria general del Estado, p. 8. Neste sentido é a posição de Sampay: Jellinek reconhece, expressamente, que o Estado possui uma dupla natureza - como instituição jurídica e como formação social, e que, em conseqüência, duas disciplinas autônomas devem ocupar-se dele: a teoria jurídica do Estado e a teoria social do Estado. Cf. Sampay, Arturo Enrique. Introduccion a la teoria del Estado, p. 105. Ainda no mesmo sentido é a posição de Rojina Villegas: para Jellinek, o Estado deve ser estudado sob dois pontos de vista fundamentais: o sociológico e o jurídico; Jellinek considera que só um conhecimento sociológico e jurídico do Estado, nos pode dar uma idéia completa tanto do fenômeno social, como do jurídico. Cf. Rojina Villegas, Rafael. Teoria General del Estado, p. 19.

[17] Cf. Groppali, Alexandre. Doutrina do Estado, p. 10.

[18] Cf. Sampay, Arturo Enrique. Introduccion a la teoria del Estado, p. 8.

[19] Cf. Heller, Hermann. Teoria del Estado, p. 21.

[20] Cf. Groppali, Alexandre. Doutrina do Estado, p. 9.

[21] Cf. Groppali, Alexandre. Doutrina do Estado, p. 9.

[22] Cf. Groppali, Alexandre. Doutrina do Estado, p. 15.

[23] Cf. Vilanova, Lourival. O problema do objeto da Teoria Geral do Estado, p. 165.

[24] Cf. Vilanova, Lourival. O problema do objeto da Teoria Geral do Estado, p. 243.

[25] Cf. Ferreira, Pinto. Teoria Geral do Estado, p. 16.

[26] Também neste sentido Willis Santiago Guerra Filho. Cf. Guerra Filho, Willis Santiago. Teoria política do direito, pp. 15-20.

[27] Neste sentido Menezes, Aderson. Teoria Geral do Estado, p. 23.

[28] Cf. Groppali, Alexandre. Doutrina do Estado, p. 31. No mesmo sentido: Dalari, Dalmo de Abreu. Elemento de teoria geral do Estado, p. 7.

[29] Cf. Fayt, Carlos S. Derecho político, p. 123.

[30] Neste sentido cf. Groppali, Alexandre (Doutrina do Estado) e Dalari, Dalmo de Abreu (Elementos de Teoria Geral do Estado). No mesmo sentido: "utilizando-se de uma metodologia plúrima, nela o objeto material (Estado) é analisado sob várias óticas, tais como histórica, sociológica e político-jurídica, o que além de abstrata, a torna uma ciência-síntese". Cf. Dantas, Ivo. Teoria do Estado, p. 36.