TEORIA GERAL DO ESTADO

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O Barão de Montesquieu e o princípio da separação de poderes

 

            A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consagra no seu artigo 16: "Toda sociedade que não assegura a garantia dos direitos nem a separação de poderes não possui Constituição". De outra maneira a constituição da República Federativa do Brasil (de 1988) consagra o mesmo princípio: "Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".[1] A constituição imperial também prescrevia a separação de poderes, mas segundo o modelo de Benjamin Constant incluindo o "poder moderador".[2]

 

            Este princípio jurídico consagrado pelas constituições brasileiras que remonta a [u1] Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão está geralmente associado a duas idéias: a) a que consagra a "teoria da separação de poderes", que são executivo, legislativo e judiciário (e ainda o moderador) e b) que esta "teoria da separação de poderes" foi elaborada por Montesquieu em meados do século XVIII e publicada no clássico O Espírito das Leis.

 

Outros juristas (mais zelosos) da "teoria da separação de poderes" esclarecem que não se trata da separação de poderes e que Montesquieu nunca teria feito tal afirmativa. Primeiro, porque sendo o poder soberano indivisível, implicaria em um contra-senso afirmar que o poder máximo e incontestável poderia ser contestado pelo seu igual já que o poder estava dividido (separado). Com vistas a ajustar a teoria dominante à crítica, passou-se a designar este princípio de "teoria da separação de funções" e não mais de "poderes", que manteve sua unidade. Em seguida, nova crítica demonstrou que a idéia de "separação" prevê que os órgãos que exercem o poder estariam rigidamente afastados uns dos outros, não cabendo portanto qualquer interferência de um órgão no outro, cujas funções, atribuições e competências bem definidas seriam excludentes e nunca sobrepostas; a "separação de poderes" ou "separação de funções" não explica, por exemplo, a necessidade da sanção ou a faculdade do veto exercido pelo órgão da função executiva sobre o procedimento legislativo. Desta maneira, mais um ajuste foi realizado para adequar a "distribuição de funções[u2] ".

 

Da publicação de O Espírito das Leis, no qual Montesquieu não faz qualquer referência expressa a "separação de poderes", "separação de funções" ou "distribuição de funções", passando pela publicação dos Artigos Federalistas (particularmente os artigos 47, 48 e 51 de autoria de James Madison), até esta reviravolta da doutrina jurídica das últimas décadas, muita confusão acompanhou esta trajetória.

 

A separação de poderes vem sendo tratada como uma teoria e não como uma doutrina. Acompanhando a distinção de Lourival Vilanova, a teoria aponta para uma conclusão científica, portanto neutra, isenta de opções valorativas; a doutrina mantém o rigor científico, especialmente a coerência dos seus postulados, mas seus pontos de partida (sua causa ou seu fim) são determinados relativamente, segundo concepções valorativas do estudioso.[3] Acrescente-se, além desta distinção, que enquanto Montesquieu justificava os postulados do capítulo Constituição da Inglaterra como um meio eficaz de garantia da liberdade negativa, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão a referida doutrina passou a ser aceita dogmaticamente.

 

Antes de apresentar os principais problemas da doutrina da separação de poderes (ou suas variáveis terminológicas) nos nossos dias, cabe reconstituir o pensamento de Montesquieu e de Madison sobre o assunto, o primeiro por ser-lhe imputada a autoria da doutrina, o segundo por tê-la adequado após a queda do antigo regime.

 

4.1 Montesquieu e a doutrina da separação de poderes

 

            Imputa-se a Montesquieu a formulação moderna da teoria da separação de poderes. Além de moderna, a tese de Montesquieu era liberal (embora prescindisse dos direitos naturais de fundamento metafísico). A justificativa inicial do pensador francês era garantir a liberdade[4] por meio de um engenho institucional pelo qual impediria a tendência natural do gestor do poder abusar dele.[5]

 

            Há registros anteriores que fazem a distinção entre os poderes do Estado. Aristóteles, analisando as constituições da antigüidade, identificou que o governo exercia três espécies de funções ou poderes: "destas três partes uma trata da deliberação sobre assuntos públicos; a segunda trata das funções públicas (...); a terceira trata de como deve ser o poder judiciário".[6] Locke, pouco antes de Montesquieu, na mesma obra que apresentou a teoria dos direitos naturais, distinguiu três poderes: a) legislativo, b) executivo e c) federativo[7] (além de um quarto poder: a prerrogativa).[8]

 

            Ressalta-se, no entanto, o mérito e a primazia de Montesquieu por ter elaborado a doutrina da separação de poderes como um instrumento de garantia da liberdade, portanto, prescritivo e não descritivo, e porque especificou cláusulas de funcionamento da sua doutrina, não como um modelo estático, mas como um sistema dinâmico[u3] .

 

            Uma análise mais atenta da Constituição da Inglaterra,[9] no entanto, levará a concluir que Montesquieu elaborou três teorias e não apenas uma.

 

4.1.1 Teoria jurídica

 

            Todas as três teorias envolvem de alguma maneira a "separação" de "poderes". A teoria jurídica da "separação de poderes" não é inovadora, consiste em classificar os atos estatais segundo sua natureza em três espécies: a) os atos legislativos (ou funções legislativas ou ainda poderes legislativos), que criam normas jurídicas (ou expressam normas criadas pelos órgãos estatais); b) os atos executivos que aplicam as normas jurídicas, ou seja, as leis, acrescentando-se a formulação de política exterior que embora pudesse ser à margem da lei, não poderia contrariá-la;[10] e c) os atos jurisdicionais (ou judiciais), que julgam litígios e crimes, também segundo o direito vigente.[11] Não se pode afirmar que Montesquieu era um juspositivista precursor da Escola da exegese, ou ainda um defensor do Estado de direito à moda francesa (como Estado legal), pois não o era, nem mesmo seu precursor; os atos executivos e jurisdicionais não eram meras aplicações do direito legislativo, mas do direito abrangendo todas as suas fontes.

 

            Apesar da teoria de Montesquieu ser um tema recorrente da teoria geral do direito, sem sofrer grandes alterações por quase dois séculos; no século XX, Hans Kelsen apresentou uma vigorosa crítica à teoria tricotômica de Montesquieu. Para o jurista austríaco não cabe fazer distinção entre o ato de aplicar o direito para solucionar litígios e aplicar o direito para administrar a coisa pública, ambos têm a mesma natureza que é de aplicação do direito. Hans Kelsen formulou dois tipos ideais: criação e aplicação do direito. E porque são tipos ideais, a realidade dos atos estatais não são puros, são na maioria das vezes ao mesmo tempo de aplicação de uma norma fundante e de criação de uma norma (quando restringe alternativas prescritas pela norma fundante), tornando-se norma fundante de outra norma ou de um ato puro de aplicação.[12]

 

            A teoria jurídica de Montesquieu e a crítica de Hans Kelsen contribuem bem pouco para o tema que nos propomos estudar, que é a doutrina da separação dos poderes como característica do Estado liberal. A teoria jurídica da separação de poderes está presente em qualquer modelo de Estado, mesmo em sociedades políticas antecessoras do Estado moderno como a polis grega.

 

4.1.2 Teoria social

 

            Sobre o que denominamos de teoria social da separação de poderes, cabe destacar um conceito: é necessário para entender esta teoria a noção de "potências" ou "potências sociais"; constituem as três forças sociais existentes na Europa ocidental do século XVIII, especialmente na França e na Inglaterra; são elas: o rei, a nobreza e o povo.

 

            Há ainda uma assertiva de Montesquieu que é fundamental para compreender esta teoria social: "dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de algum modo, nulo".[13] Considera que enquanto o poder legislativo cria o direito e o poder executivo também participa da criação do direto,[14] na concepção de Montesquieu os juízes apenas aplicam o direito, ou expressam o direito existente silogisticamente no caso concreto, como a "boca da lei". Não há alternativas na aplicação da lei, tratando-se de mero recurso técnico.

 

            A tese do governo misto que permeava todo o pensamento político desde a antigüidade também recebeu a acolhida de Montesquieu. O nobre francês argumentou que a estabilidade social só poderia ser o resultado de um poder soberano exercido compartilhadamente por todas as potências sociais. E, ainda, que a proteção da liberdade só poderia ser garantida com esta participação de todas as potências sociais no processo de criação das leis, o que impediria que uma potência social restringisse a liberdade de alguém integrante de outra potência social. Confira as palavras de Montesquieu:

 

Deste modo, o poder legislativo será confiado tanto à nobreza como ao corpo escolhido para representar o povo, cada qual com suas assembléias e deliberações à parte e objetivos e interesses separados. (...) O poder executivo, como dissemos, deve participar da legislação por meio do direito de veto, sem o que seria despojado de suas prerrogativas.[15]

 

            Espelhado na Inglaterra, Montesquieu formulou um procedimento de criação legislativa com a participação das três potências sociais através de três órgãos legislativos. O poder legislativo propriamente será bicameral para permitir a representação de duas potências sociais: a câmara alta - composta por nobres escolhidos pelo critério hereditário[16] - e a câmara baixa - composta pelo povo,, cujos representantes serão eleitos.[17] O rei participará do processo legislativo, embora detenha propriamente o poder executivo, com a sanção ou o veto.[18] A promulgação de qualquer lei exigirá a anuência dos três órgãos - câmara alta, câmara baixa e rei, portanto, com a anuência das três potências sociais - nobreza, povo e rei.

 

            Como aplicação da tese do governo misto, os três órgãos também representam as três formas clássicas de governo: aristocracia, democracia e monarquia.

 

            Montesquieu deixa claro que se trata de uma teoria social e não de uma teoria jurídica. De nada vale que o poder legislativo seja exercido compartilhadamente por três órgãos se todos eles representam a mesma potência social. Nestas circunstâncias, para Montesquieu, não haveria separação de poderes, pois o poder soberano continuaria exercido por uma só potência social. Desta maneira, os objetivos da separação dos poderes - a estabilidade social e a liberdade - não seriam alcançados.[19]

 

4.1.3 Engenharia institucional

 

            Por fim, a teoria política de Montesquieu. Esta poderia ser considerada precursora da teoria de freios e contrapesos desenvolvida por James Madison nos Artigos Federalistas. A partir da sua teoria social, que prevê a participação de três órgãos no processo de criação legislativa, Montesquieu se preocupou com a dinâmica do exercício do poder soberano. Enfatizou a máxima de que todo poder tenderá a abusar da liberdade e que só o poder fará frente ao poder.[20] Nesta engenharia institucional formulada por Montesquieu, tanto a teoria social quanto a teoria jurídica servem-lhe de suporte. A simples desconcentração do poder soberano entre três órgãos não é suficiente para impedir o abuso do poder e uma nova concentração do poder. Montesquieu prescreve controles mútuos entre os órgãos do Estado de modo a conferir-lhes equilíbrio e efetivo controle. Nesta teoria, também, Montesquieu não esquece das outras funções do Estado e se preocupa para que os órgãos jurisdicionais não detenham simultaneamente as funções de criar leis e de aplicá-las. Note-se, no entanto, que Montesquieu não eleva o judiciário ao status de "poder soberano", mas reconhece sua importância, especialmente do risco dos juízes abusarem de suas funções decidindo contra a lei.

 

Não cabe, portanto, imputar a Montesquieu a autoria desta "teoria da separação de poderes" (teoria da separação rígida) tão comum nos manuais de Teoria Geral do Estado, embora a partir da reflexão inicial de Montesquieu na Constituição da Inglaterra se possa chegar lá, mas sem dar-lhe o crédito (ou mais apropriadamente o descrédito). O núcleo da preocupação de Montesquieu era sua teoria social. A teoria jurídica e a engenharia institucional, ao que parece, eram secundárias[u4] .


 

[1] As outras constituições brasileiras confirmam esta tradição, por exemplo: "Art. 3º São órgãos da soberania nacional, dentro dos limites constitucionais, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e coordenados entre si." (1934); "São Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si" (1946); "São Poderes da União, independentes e harmônicos, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário" (1967).

[2] Cinco poderes para Benjamin Constant: real, executivo, representativo de duração, representativo de opinião e judiciário. Cf. Menezes, Aderson. Teoria geral do Estado, p. 249.

[3] "Autêntica teoria é todo sistema de proposições orientado para um objeto com fim cognoscitivo. (...) teoria é, pois, ciência". Cf. Vilanova, Lourival. O problema do objeto da TGE, p. 11.

[4] Elege como modelo a Inglaterra: "Há também uma nação no mundo que tem por objetivo direto de sua constituição a liberdade política". Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 118.

[5] "A experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem diria! A própria virtude tem necessidade de limites". Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 118.

[6] Cf. Aristóteles. A política, p. 152.

[7] Cf. Locke, John. Segundo tratado sobre o governo, p. 93.

[8] Cf. Locke, John. Segundo tratado sobre o governo, p. 98.

[9] Capítulo VI do Livro XI de O espírito das leis.

[10] Ressalve-se os poderes de prerrogativa já previstos por Locke: "muitos assuntos há o que a lei não pode prover por meio algum, e estes devem necessariamente ser entregues à discrição daquele que tem nas mãos o poder executivo, para que regule conforme o exigirem o bem público". Cf. Locke, John. Segundo tratado sobre o governo, p. 98.

[11] "Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil. (...) Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado". Cf. Montesquieu. O espírito das leis, pp. 118-9.

[12] "Todo ato criador de Direito deve ser um ato aplicador de Direito, quer dizer: deve ser a aplicação de uma norma jurídica preexistente ao ato, para poder valer como ato da comunidade jurídica. Por isso, a criação jurídica deve ser concebida como aplicação do Direito, mesmo quando a norma superior apenas determine o elemento pessoal." Cf. Kelsen, Hans. Teoria pura do direito, p. 262.

[13] Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 121.

[14] Assim como Locke, Montesquieu reconhecia apenas como expressão do poder soberano a legislação, que como veremos era partilhada entre o corpo legislativo e o monarca.

[15] Cf. Montesquieu. O espírito das leis, pp. 121 e 123.

[16] "O corpo dos nobres deve ser hereditário". Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 121.

[17] "Todos os cidadãos, nos diversos distritos, devem ter direito a dar seu voto para escolher o representante, exceto os que estão em tal estado de baixeza que são consideradas sem vontade própria". Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 121.

[18] "Chamo faculdade de impedir o direito de anular uma resolução tomada por qualquer outro, o que constitui o poder dos tribunos de Roma". Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 121.

[19] Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 119.

[20] Cf. Montesquieu. O espírito das leis, p. 118.