DISCURSUSCurso de História da Filosofia Moderna
Jean-Jacques Rousseau
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Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA

Segunda Unidade - SÉCULO XVIII:

  • Leitura de Discurso sobre a Desigualdade entre os Homens;
Por Antônio Rogério da Silva

O segundo discurso que Rousseau apresentou à Academia de Dijon, em 1754, não obteve a mesma premiação que o primeiro, vitorioso ao responder de forma negativa à questão sobre a contribuição das artes e ciências para o progresso dos costumes humanos. Tal como o primeiro, o Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens trata de modo quase pejorativo o estatuto da vida em comunidade nas cidade modernas. Antecipa aqui a noção de contrato social que seria desenvolvida mais tarde, em 1762. Além disso, faz uma descrição muito mais pessimista dos avanços da civilização, enquanto sonha com o "paraíso perdido" do homem primitivo.

Não obstante o fato de ter sido preterido no concurso disputado, o segundo discurso é um dos textos de Rousseau de maior divulgação, tanto hoje, como na época de sua publicação, perdendo apenas para o famoso romance A Nova Heloísa, de 1761, que serviu de inspiração a toda primeira geração de autores românticos, como o Goethe (1749 - 1832) de Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774). Aliás, Rousseau pode ser legitimamente considerado o precursor da filosofia romântica que contagiou todo século XIX com seu ideal do "bom selvagem" e do direito de todos a se revoltarem contra as injustiças sofridas em Estados governados por tiranos. O segundo discurso desenvolve alguns pontos que já haviam sido tratados superficialmente no primeiro trabalho premiado, tais como a deterioração da vida em sociedade, comparada com uma convivência remota mais feliz, e a origem da desigualdade tendo como um dos fatores principais a valorização dos talentos de uma meritocracia que acaba por formar classes aristocráticas distintas das menos favorecidas fisicamente.

Festa BrasileiraAo lado das obras de seus colegas enciclopedistas, Rousseau valeu-se dos relatos de viagens feitas à América para traçar à distância o perfil de uma era originária, onde os homens viviam felizes com o pouco que tinham. Desde os primeiros anos do descobrimento, que os europeus tiveram sua imaginação incendiada pelos relatos dos navegantes, a ponto de procurarem reproduzir teatralmente o cenário e o comportamento dos nativos. Durante o século XVI, tornaram-se famosas as chamadas Festas Brasileiras, onde alguns indígenas, misturados a marinheiros, que conheciam bem seus costumes, e prostitutas, que faziam os papéis das índias, representavam as cenas cotidianas da vida no novo mundo. Montaigne foi o primeiro filósofo a ter contato direto com índios tupinambás que foram levados para Rouen, em 1562, como testemunhos do curto período de ocupação da França Antártica (1556 a 1567). Com a descrição feita por uma pessoa que permanecera na América por uma década e fora seu serviçal "durante muito tempo", Montaigne escreveu "Dos Canibais", texto incluído no primeiro livro de seus Ensaios (1580), onde traçou diversos paralelos da vida selvagem com a Grécia antiga. Depois de Montaigne, Hobbes, Voltaire e Locke imaginaram várias situações que poderiam ocorrer no novo continente, a fim de servirem como ponto de partida de suas teorias sobre origem da sociedade humana ou como exemplos exóticos de lugares fantasiosos, onde tudo poderia acontecer.

Rousseau foi um dos que se sentiram atraídos pela oportunidade antropológica, até então inédita, de tentar recriar o caminho percorrido pela humanidade, desde os tempos mais remotos até sua época. Ao contrário de Hobbes e Locke, ele imaginou que os primeiros humanos com as características físicas idênticas aos contemporâneos viviam, apesar das dificuldades naturais em um estado de felicidade completamente diferente do estado de guerra permanente, que os empiristas ingleses pensavam. Utilizando praticamente os mesmos métodos de raciocínio hipotético empregado por Hobbes e Locke que procura se apoiar empiricamente em fenômenos observados no comportamento humano, Rousseau extrai conclusões radicalmente diferentes de seus antecessores.

Discurso Natural

Já no prefácio, Rousseau adianta a perspectiva antropológica adotada, destacando a importância maior da compreensão do que vem a ser humano. Porém, procurar entender como foi traçada a evolução social desta espécie é uma das tarefas mais difíceis posto que as pistas principais do início da humanidade foram apagadas pelo tempo. Ainda hoje, quando técnicas arqueológicas avançadas estão à disposição dos historiadores, não é possível determinar, com os vestígios descobertos depois de Rousseau, como se desenvolveram os primeiros passos em direção à civilização, que dirá das tentativas ambiciosas propostas no século XVIII ou XVII. Embora estivesse consciente das limitações reais para execução de sua tarefa, Rousseau não se intimidou em acusar todos os seus contemporâneos e colegas acadêmicos de partilharem, do pior dos mundos possíveis, invertendo a máxima leibniziana.

O objetivo do Discurso sobre a Desigualdade entre os Homens é tentar mostrar que a fonte de todos os males existentes no convívio humano está no próprio desenvolvimento da sociedade moderna. O desenrolar do argumento é feito em duas partes. Na primeira descreve-se o estado de natureza original imaginado e os tipos de desigualdades que aí poderiam ser encontradas. Na segunda parte, vem as etapas de evolução da sociedade e o agravamento das desigualdades entre ricos e pobres; governo e cidadãos; e, por fim entre tiranos e súditos. A intenção é provar que a desigualdade existente surge como vícios e artifícios da sociedade e da cultura, não tendo portanto nada de natural. O homem natural basta a si mesmo e assim é feliz, enquanto o homem artificial depende do trabalho e da cooperação dos outros para encontrar a felicidade perdida, vivendo então em uma constante infelicidade.

Para chegar a tanto, o primeiro passo é distinguir a desigualdade fisiológica vinculada à forma constitutiva do corpo do indivíduo - saúde, faixa etária, musculatura etc. - da desigualdade moral que varia segundo normas e convenções humanas que estabelecem privilégios para uns em detrimento de outros. De imediato, deve-se descartar a relação suposta entre os dois modos de desigualdade, já que a condição física não seria a razão pela qual alguém ocupa uma posição superior a de outro em uma sociedade - o cais do porto e os pátios de construção estão tomados por fortes estivadores e pedreiros que são obrigados a seguirem as ordens de despachantes e engenheiros não tão fortes. Apesar de uma série de fatos históricos serem citados ao longo do texto, a pesquisa inicialmente não considera as verdades da história, ocupando-se apenas de raciocínio hipotético que se espera ser capaz de esclarecer a natureza das coisas e a verdadeira origem do comportamento humano (1).

Em meio a uma natureza composta por uma flora e fauna abundante, imagina-se o homem desprovido de qualquer instinto especial imitando os outros animais e mantendo facilmente a subsistência com os diversos alimentos que encontra. A robustez e a firmeza do caráter fazem com que aqueles bem constituídos sobrevivam aos mais fracos. Antes de inventar qualquer instrumento, tem o homem de contar apenas consigo mesmo em seus atributos corporais. Nesta condição simples, se tivesse mantido um comportamento uniforme e solitário, conseguiria o homem manter sua saúde e força, sem se depravar pelo uso da razão. Para Rousseau, "o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e (...) o homem que medita é um animal depravado" (2).Sem a necessidade de remédios e tendo poucas doenças, o estado de natureza seria uma situação mais preferível do que a era moderna e suas infinidades de males.

A vida doméstica torna o homem, como os outros animais domesticados, mais fraco e medroso. Comparativamente, tanto homens como animais não passariam de máquinas engenhosas, com a diferença de que os seres humanos executariam suas ações livremente, fazendo escolhas que os animais não poderiam fazer. Sendo assim, ao invés de satisfazerem seus desejos instintivamente, os humanos querem sempre mais do que lhes é suficiente, deixando que sua vontade comande seus comportamento, deformando os sentidos já saciados. É essa vontade livre que torna o homem um agente capaz de decidir em realizar ou não uma determinada ação e, por conseguinte, diferente dos outros animais, em vez da simples faculdade de entendimento. Na perspectiva de Rousseau, todo "mecanismo dos sentidos e da formação de idéais" pode ser explicado por leis mecânicas, mas o processo de escolha e os sentimentos envolvidos não são passíveis de uma explicação mecanicista, dada sua vinculação estrita com as atividades da alma e não do corpo (3). Outro fator decisivo na distinção entre homens e animais é a busca de perfeição, ou perfectibilidade, que não existe entre as outras espécies, cujos indivíduos nascem, crescem e morrem, mantendo as mesmas características básicas. No homem, entretanto, a perfectibilidade pode levar a perdas inesperadas que põem o sujeito em um estágio inferior ao inicial, como na velhice onde as faculdades cognitivas afetam o uso da razão e colocam o idoso em um grau de dependência maior que o das crianças. Tal como em Hobbes, são as paixões, como os desejos e os temores, que obrigam um aperfeiçoamento constante do raciocínio. O homem selvagem só conhece os impulsos naturais, desconhecendo até mesmo o medo da morte que é "uma das primeiras aquisições feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal (4).

Por outro lado, para que as idéias metafísicas se desenvolvessem no homem seria preciso antes que fosse desenvolvido o uso da palavra, em uma língua dotada de gramática. A primeira linguagem universal utilizada estava toda baseada no grito da natureza. Gradativamente, sons e gestos imitativos vão constituindo as palavras que permitem a formação de proposições necessárias ao entendimento. Contudo, o desenvolvimento de uma razão cultivada e paixões refinadas só ocorre em uma sociedade já constituída, pois no estado de natureza o instinto é suficiente para fornecer o que for de necessário para a vida.

Diferente de Hobbes, Rousseau defendeu que apesar dos primeiros humanos não terem uma noção exata de bem e mal, no sentido moral, haveria entre os primitivos uma disposição para piedade, uma virtude universal que precede à reflexão e pode mesmo ser observada em alguns animais superiores. A piedade é pois um sentimento natural que pode ser expresso na máxima "alcança teu bem com menor mal possível para outrem" (5). Paixões naturais violentas, como o sexo, são aquelas que dão origem às leis necessárias para contê-las. Simultaneamente, o sentimento moral correspondente à atração sexual que é o amor, surge de modo artificial com o propósito de estabelecer em sociedade o controle de um gênero sobre o outro e por conseguinte uma desigualdade que não se encontra na natureza. Aqui, não haveria o refinamento das paixões, a educação, nem a história e a cultura a desenvolverem as diferenças dos tipos de vida de cada um. Na natureza não há diferença significativa entre os indivíduos da mesma espécie, toda desigualdade surge do convívio social e da necessidade que cada um tem do trabalho do outro.

(...) [P]or serem os laços da servidão formados unicamente pela dependência mútua entre os homens e pelas necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um homem sem antes tê-lo colocado na situação de não poder viver sem o outro, situação essa que, por não existir no estado de natureza, nele deixa cada um livre do jugo e torna inútil a lei do mais forte (ROUSSEAU, J-J. Discurso sobre a Desigualdade, I parte, p. 258).

Sociedade dos Desiguais

A segunda parte do Discurso sobre a Desigualdade trata, então de apresentar os motivos pelos quais a vida em sociedade provocou maior desigualdade entre os homens do que aquelas diferenças físicas encontradas no estado de natureza. Tal como em Locke, a fundação da sociedade aconteceu a partir do instante em que o direito à propriedade de alguém foi reconhecido pelo outro. Para chegar a esse reconhecimento, foi preciso, entretanto, que uma série de idéias fosse desenrolada.

O sentimento de existência foi a primeira noção desenvolvida nessa direção e com ela a preocupação com a própria conservação. A perigosa concorrência pelos recursos com outros animais e depois com um número cada vez crescente de pessoas, além das intempéries ambientais, exigiram do homem a invenção de instrumentos que o auxiliassem a sobreviver. A superioridade que essas invenções davam ao homem frente aos outros animais produziram a consciência de si próprio e a motivação pela promoção do próprio bem estar. Em meio à caça feita em grupo e no costume de morarem juntos, alimentou-se também a noção de compromisso mútuo e reforço à ligação familiar. Ao lado disso, surgem os sentimentos de amor e ciúmes, sustentados por preferências que deram o primeiro passo para a desigualdade. As primeiras sociedades assim formadas mantinham características do estado de natureza inicial e antecipavam alguns problemas das atividades urbanas mais recentes (6).

O desenvolvimento posterior da cultura da terra provocou as demandas pelas primeiras regras de justiça a reconhecerem a propriedade e a divisão dos bens. Os mais fortes e habilidosos conseguem, assim, obter para si maior quantidade de recursos, cuja acumulação apresenta os primeiros sinais de riqueza. Enquanto alguns se adaptavam bem às mudanças e ficavam ricos, os pobres permaneciam ainda no seu estado natural. Essa flagrante desigualdade colocou a primeira sociedade em estado de guerra. Com intuito de proteger suas posses, foi conclamada a união sob o pretexto de defesa dos fracos. Eis como a lei de propriedade acabou por restringir a liberdade natural de todos. O corpo político estabelece-se como um contrato pelo qual as partes unidas se comprometem a cumprí-lo sob a observância de magistrados que têm a obrigação de manter a tranquilidade de todos e visar a utilidade pública ao invés de seu próprio interesse (7).

Nesse novo tipo de sociedade, a distinção por mérito e riqueza passou a reger a formação dos governos. Essas distinções políticas foram acompanhadas de distinções de caráter entre aqueles que procuravam manter a ordem e os que queriam preservar sua liberdade. No último grau dessas desigualdades, surgiram o déspota que, a despeito do contrato social, procura manter-se no poder pela força e, com ele, o direito à rebelião para que fossem preservados os bens e a vida dos súditos. Desse modo, pouco a pouco, o homem natural foi sendo substituído pela reunião de homens artificiais (8).

(...) [O] homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo, tanto no fundo do coração quanto nas suas inclinações, que aquilo que determinaria a felicidade de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só almeja o repouso e a liberdade, só quer viver e permanecer na ociosidade e mesmo a ataraxia do estóico não se aproxima de sua profunda indiferença por qualquer outro objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e, orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que não gozam a honra de partilhá-la (ROUSSEAU, J-J. Op. cit., II parte, p. 281).

Junto ao Discurso sobre a Desigualdade, foram anexados uma longa dedicatória à república de Genebra, onde nascera o autor, descrita como a cidade ideal, de acordo com as hipóteses defendidas ao longo do texto. Pouco tempo depois, Rousseau se arrependeria deste elogio quando suas obras Emílio e Do Contrato Social forem proibidas, em 1762, e ele mesmo ter a prisão decretada por seus conterrâneos. Depois de publicado o resultado do concurso, Rousseau acrescentou algumas notas onde discorreu sobre a bibliografia utilizada na sua elaboração. Do Contrato Social procurou apresentar um argumento mais consistente do que esse segundo discurso. Entretanto, seu autor teve de colher, em Genebra, os frutos amargos da semente que fora lançada em Dijon. Depois de Rousseau, a filosofia moderna tomou os novos rumos traçados pelos devaneios deste inquieto caminhante que levaram à conturbada era contemporânea.

Notas

1. Veja ROUSSEAU, J-J. Discurso sobre a Desigualdade pp. 235-237.
2. ROUSSEAU, J-J. Op. cit., I parte, p. 241.
3. Veja ROUSSEAU, J-J. Idem, I parte, p. 243.
4. ROUSSEAU, J-J. Ibidem, I parte, p. 244.
5. ROUSSEAU, J-J. Ibidem, I parte, p. 254.
6. ROUSSEAU, J-J. Ibidem, II parte, pp. 259-264.
7. ROUSSEAU, J-J. Ibidem, II parte, p. 275.
8. ROUSSEAU, J-J. Ibidem, II parte, p. 281.

Bibliografia

BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia; trad. Desidério Murcho et al.. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BUENO, E. História do Brasil. - São Paulo: Folha da Manhã, 1997.

MONTAIGNE, M. Ensaios; trad. Sérgio Millet. - São Paulo: Abril Cultural, 1972.

ROUSSEAU, J-J. Do Contrato Social; Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; Discurso sobre as Ciências e as Artes trad. de Lourdes S. Machado. - São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)

________. A Nova Heloísa; trad. Fulvia M. L. Moretto. - São Paulo: HUCITEC, 1994.