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Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA

Terceira Unidade - SÉCULO XIX:

  • Autores Importantes do Século;
Por Antônio Rogério da Silva

O individualismo que vinha sendo definido desde o Renascimento atingiu seu auge no final do século XVIII. Sofreu um forte revés quando Hegel tentou englobar todas essências na totalidade de um espírito absoluto. Nem Karl Marx, que começou a entender seu materialismo histórico a partir das necessidades físicas de um indivíduo resistiu a incorporá-lo em uma classe em luta com as outras. Contudo, apesar de uma mentalidade comunitariana (nacionalismo e socialismo) estar em ascensão na segunda metade do século XIX, alguns autores importantes dedicaram sua obra à defesa do direito de cada um planejar sua vida e destacar-se da massa, ainda que colocassem sua própria existência em risco.

O romantismo produziu três autores de relevo que tratavam o conceito de indivíduo não apenas sob a perspectiva de uma defesa racional de seus direitos, mas sobretudo contaminada por um desejo de transcendentalização do elemento comum de uma multidão informe. De uma perspectiva teológica o filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), apelou para um sentimento de culpa a fim de provar a distinção da existência do indivíduo, em meio à multidão, e perante Deus. Ao buscar a consciência de si mesmo o homem pecaria em desepero, marcando sua posição individual. Tal noção construída pelo paradoxo da fé que depende de um aprofundamento da verdade que só é possível em uma introspecção absoluta, em um mergulho na subjetividade onde o indivíduo pode se colocar diante de Deus e se preparar para redenção de sua culpa. Isso seria necessário por causa do absurdo posto pelo cristianismo que punha Jesus como mediador entre o homem e Deus, por um lado pecador e por outro como acesso à verdade. No desespero que ocorre nessa busca de si mesmo, a doutrina do pecado serve como meio de solucionar esse paradoxo, afirmando a diferenciação de um indivíduo que deve ser julgado por suas faltas. O pecado seria o único atributo humano que não poderia ser aplicado a Deus (1).

(...) Nós bem sabemos, por sabê-lo de experiência, que numa rebelião de soldados ou de marinheiros, os culpados são tantos, que não se pode pensar em castigar; mas quando é o público, ou quando é o povo, não somente não há crime, mas no dizer dos jornais, nos quais podemos crer como se fossem o Evangelho ou a Revelação, é a vontade de Deus. Por que esta modificação? Porque a idéia de julgamento não corresponde senão ao indivíduo, porque não se julgam massas; podem massacrar-se, inundar-se com água, lisonjear-se, em suma, é possível tratar a multidão de cem maneiras, como um animal; mas é impossível julgar as pessoas como animais: impossível, porque os animais não se julgam; seja qual for a quantidade dos julgados, um julgamento que não julga as pessoas uma a uma individualmente não é senão farsa e mentira. Com tantos culpados, a empresa é impraticável; por isso se abandona tudo, sentindo a quimera de um juízo, e que são demasiados para serem julgados, que estaria acima das nossas forças fazê-los passar um a um, e portanto é necessário desistir de os julgar (KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano, liv. V, cap. II, p. 415).

Somente Deus pode abstrair a multidão e julgar todos indivíduos, envolvidos na multidão, em particular. Kierkegaard construiu sua defesa da individualidade sem fazer uso de qualquer sistema filosófico. Escreveu vários textos sob o uso de pseudônimos, como Johannes de Silentio em Temor e Tremor de 1843, e Frater Taciturnus, em Culpado? Não Culpado?. Tratou principalmente de temas religiosos envoltos em uma fina ironia ao estilo caracterizado por Voltaire e Sócrates (c. 470-399 a.C.), em uma sociedade conservadora, onde ainda predominava as pretensões teológicas do sistema hegeliano, ao qual atacava a imersão do espírito subjetivo em um absoluto que englobava a tudo.

Do outro lado do Atlântico, um filósofo estadunidense descendente de franceses huguenotes e de pastores escoceses já fazia uma defesa do individualismo de forma mais laica, apesar da influência do transcendentalismo de Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Emerson acreditava que a alma era parte de Deus e o homem uno em sua humanidade. Assim, a alma seria também um reflexo do mundo em sua totalidade. De tal forma que por trancendentalismo se entendia a unidade humana em sua relação com a divindade (2). Mas Henry David Thoreau (1817-1862), que era amigo de Emerson, soube partilhar desse transcendentalismo naquilo em que este pretendia também um retorno à natureza, sem no entanto deixar de sustentar a independência do homem perante à massa da humanidade.

(...) [A] massa de homens serve ao Estado não na sua qualidade de homens, mas sim como máquinas, entregando seus corpos. Eles são o exército permanente, a milícia, os carcereiros, os policiais, posse comitatus [possível comitiva], e assim por diante. Na maior parte dos casos não há qualquer livre exercício de escolha ou de avaliação moral; ao contrário, esses homens se nivelam à madeira, à terra e às pedras (...). No entanto, é comum que homens assim sejam apreciados como bons cidadãos. Há outros, como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, funcionários e dirigentes, que servem ao Estado principalmente com a cabeça, e é bem provável que eles sirvam tanto ao Diabo quanto a Deus - sem intenção -, pois raramente se dispõem a fazer distinções morais. Há um número bastante reduzido que serve ao Estado também com sua consciência; são os heróis, patriotas, mártires, reformadores e homens, que acabam por isso necessariamente resistindo, mais do que servindo; e o Estado os trata geralmente como inimigos. Um homem sábio só será de fato útil como homem, e não se sujeitará à condição de "barro" a ser moldado para "tapar um buraco e cortar o vento"; ele preferirá deixar esse papel, na pior das hipóteses, para suas cinzas (THOREAU, H. A Desobediência Civil, p. 38-39).

Thoreau escreveu A Desobediência Civil depois de ter dormido uma noite na cadeia por se recusar a pagar impostos a um governo que promovia uma guerra contra o México, entre 1846 e 1848, para ampliar o território onde seria possível praticar a escravidão. Abolicionista que era, Thoreau resolvera abandonar, no dia 4 de julho de 1845, seu convívio com a pequena comunidade de Concord (Massachusetts, EUA) e viver em uma casa de madeira que ele mesmo construíra em uma propriedade de Emerson, às margens do lago Walden. A prisão em Concord ocorreu um ano depois. E depois que Thoreau deixou a casa em Walden, escreveu um livro sobre sua estadia no local, Walden (1854), e narrou em A Desobediência Civil - proferido no liceu de Concord, em 1848 - os motivos de sua recusa em participar de uma sociedade injusta. Além desses títulos, Thoreau escreveu outros ensaios contra a escravidão (A Escravidão em Massachusetts, de 1854) e a favor de um contato pessoal mais próximo entre o homem e a natureza (Caminhando, publicado um mês depois de sua morte).

Apesar de sua vinculação ao trancendentalismo de Emerson, Thoreau procurou preservar a autonomia do indivíduo em suas tomadas de decisão e o respeito à consciência individual, pregando uma resistência pacífica frente aos erros cometidos pela sociedade e pelo Estado contra os direitos de cada um, sob qualquer forma de governo.

A autoridade do governo (...) é ainda impura; para ser inteiramente justa, ela precisa contar com a sanção e com o consentimento dos governados. Ele não pode ter sobre minha pessoa e meus bens qualquer direito puro além do que lhe concedo. O progresso de uma monarquia absoluta para uma constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo. Será que a democracia tal como a conhecemos é o último aperfeiçoamento possível em termos de construir governos? Não será possível dar um passo a mais no sentido de reconhecer e organizar os direitos do homem? Nunca haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que ele venha a reconhecer no indivíduo um poder maior e independente (...) e até que o indivíduo venha a receber um tratamento correspondente. Fico imaginando, e com prazer, um Estado que possa enfim se dar ao luxo de ser justo com todos os homens e de tratar o indivíduo respeitosamente, como um vizinho; imagino um Estado que sequer consideraria um perigo à sua tranquilidade a existência de alguns homens que vivessem à parte dele, sem nele se intrometerem nem serem por ele abrangidos, e que desempenhassem todos os deveres de vizinhos e de seres humanos. (...) [J]á fiquei imaginando um Estado desses, mas nunca o encontrei em qualquer lugar (THOREAU, H. Op. cit., p. 66-67).

Thoreau imaginava um Estado cujo poder fosse fundado não no povo, mas no indivíduo. Um Estado cuja constituição não fosse meramente democrática, mas cidadã. Contudo a falta de sistematização de suas idéias impediu que suas teses fossem usadas além de uma simples estratégia de resistência aos abusos da autoridade formal sem apresentar um projeto construtivo de sociedade de indivíduos autônomos.

Ao Nietzsche

A falta de um método e de um sistema atingiu também ao maior crítico do idealismo alemão e do racionalismo positivista que dominara o advento das ciências no século XIX. Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) começou, tal qual Rousseau, como alguém que estava destinado ao mundo da música, mas que, por se envolver em polêmicas com a autoridade musical de seu tempo, viu sua carreira promissora de compositor e pianista ser abafada. Até Wilhelm Richard Wagner (1813-1883) escrever e montar sua ópera Parsifal, um ano antes de morrer (1882), a obra de Nietzsche esteve impregnada de wagnerianismo, isto é, uma concepção revolucionária da ópera como instrumento de transformação da música do futuro em uma arte total, envolvendo imagem e som, além de um apelo a ideais de resgate da tragédia grega e do voluntarismo do guerreiro bárbaro. Foi com esse espírito que Nietzsche iniciou sua obra com O Nascimento da Tragédia (1872) e prosseguiu até os quatro ensaios de suas Considerações Intempestivas (1873-1876). Depois de Parsifal (1882), o germanismo e o anti-semitismo ficaram mais nítidos na obra de Wagner com o recurso a um cristianismo que afirmasse o amor espiritual como ideal de beleza e valor moral.

Nietzsche já desconfiava, em 1876, que Wagner, tal como Schopenhauer, deveria ser mais um ídolo a ser derrubado. Em Humano, Demasiado Humano (1878-1880), rompe definitivamente com Wagner e tudo que pudesse ter algum valor moral ou idealista. No livro seguinte, Aurora (1881), começa seu ataque contra a moral, enquanto A Gaia Ciência (1882) procura deslindar a ciência em canções de estilo provençal, onde traça a relação entre o poder e a razão. Esses dois livros foram um prenúncio para o livro mais famoso de Nietzsche, embora O Nascimento da Tragédia tenha sido o livro que mais vendeu enquanto ele estava vivo. De fato, Assim Falou Zaratustra (1883-1885) foi um fracasso editorial que não passou de quarenta exemplares impressos, dos quais apenas sete foram distribuídos entre amigos e críticos.

Nietzsche colocou Zaratustra no ápice de sua obra. Uma superação dos momentos difíceis, passados em uma Alemanha wagneriana, que ainda recendia a Hegel, sem contar com mais uma desilução amorosa da recusa de Lou von Salomé em lhe aceitar como marido e as crises nervosas. Zaratustra anuncia a morte de Deus para a filosofia, enquanto projeta a vinda de uma nova concepção de humano que supere o homem idealizado no romantismo. O übermensch (sobre-humano) deverá ultrapassar todas as limitações humanas, seus preconceitos de crenças, classes e nacionalidade.

O homem é uma corda estendida entre o aminal e o sobre-humano - uma corda sobre o abismo
É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar.
O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso (NIETZSCHE, Fr. Assim Falou Zaratustra, prólogo, cap. 4).

Nietzsche é o primeiro filósofo metafísico a por fim a uma discussão interminável sobre a existência de uma divindade e a considerar o ser humano não mais como um fim em si mesmo, mas como um elemento em transformação, tal como Darwin havia colocado em sua teoria evolutiva. Toda sua obra restante, principalmente Para Além do Bem e do Mal (1886) e A Genealogia da Moral (1887), é uma demonstração de como se destrói toda uma moralidade anterior, com versos e aforismos, enquanto se prepara o terreno para o tratamento de questões filosóficas sem estar preso a preconceitos não justificados pela teoria.

Homens de uma natureza ainda primitiva, bárbaros no mais terrível sentido da palavra, homens de rapina, ainda de posse de indômita força de vontade e do desejo de dominar se precipitaram sobre raças mais fracas, mais pacíficas que se ocupavam talvez do comércio ou do pastoreio, ou ainda uma outra civilização mais pobre, que lançavam os últimos palpitares de vida em raios fúlgidos do espírito e da corrupção... A casta aristocrática sempre foi nos primórdios a mais bárbara; a sua preponderância é procurar não a força física, mas a alma - eram os homens mais completos (aquilo que quer significar também "as bestas mais completas") (NIETZSCHE, Fr Além do Bem e do Mal, aforisma 257, p. 184).

FRIEDRICH, C. D. Jornada Acima das NuvensNo modelo do aristocrático guerreiro bárbaro, surge em sua forma mais explícita a vontade de poder que leva a superação do humano para o novo que está por vir, alguém que enfrentou a luta pela sobrevivência e alcançou o topo solitário acima das nuvens de massa informe. A visão do guerreiro bárbaro vai de encontro ao ideal ascético que estaria por detrás até mesmo da crença na verdade científica.

A nossa fé na ciência baseia-se numa crença metafísica, numa parte de grande incêndio milenário, que é o resplendor da fé cristã e da fé platônica: que Deus é verdade e que a verdade é divina. E se eu dissesse que precisamente o divino é o erro e a mentira, e que Deus é a mentira? Aqui convém fazer uma pausa e meditar um bocado. A ciência necessita uma justificação. Perguntai às filosofias antigas e modernas; nenhuma se lembra, de que necessita justificação; em todas há esta lacuna. Porque? É que o ideal ascético dominou em todas as filosofias, e a verdade foi posta como Deus e não como problema. Desde o momento em que se nega o Deus do ideal ascético, há que propor este problema do valor da verdade. A vontade da verdade necessita de uma crítica; é preciso por em dúvida o valor da verdade... (NIETZSCHE, Fr A Genealogia da Moral, III ensaio, XXIV, p. 106).

Se há um sistema em Nietzsche é esse que se constrói a partir de Zaratustra a negação de Deus como verdade, de superação do conceito de homem e preparação de um novo humano onde a vontade de poder o destaca da multidão e o prepara para os ciclos de eterno retorno e valoração dos impulsos vitais. O método adotado então é o prescrito em O Crepúsculo dos Ídolos (1888) de "golpear com martelo" todos os sistemas anteriores. Nietzsche enfrentou vários colapsos mentais e no final da vida não tinha como sobreviver fora de um asilo. Sua irmã Elisabeth Förster-Nietzsche ficou responsável por sua vida e obra, após a morte. Muito da vinculação que se faz de Nietzsche e o nacional-socialismo que assumiu suas idéias, se deve ao tratamento anti-semita que ela impôs à edição póstuma de Vontade de Poder.

Notas

1 Veja KIERKEGAARD, S. O Desespero Humano, liv. V, cap. II, p. 414.
2. Dizia Emerson: "Se não interferirmos com nosso pensamento, mas agirmos com inteireza, ou virmos como algo acontece em Deus, saberemos dessa coisa em particular, e de todas as coisas, e de todos os homens. Pois o Criador de todas as coisas e de todas as pessoas se ergue atrás de nós e lança sua onisciência extraordinária sobre o mundo, por meio de nós" (EMERSON, R. Ensaios, X, p. 183).

Bibliografia

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DURANT, W. A História da Filosofia; trad. Luiz C. do N. Silva. - São Paulo: Nova Cultural, 1996.

EMERSON, R. W.. Ensaios; trad. Jean Melville. - São Paulo: Martins Claret, 2003.

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NIETZSCHE, Fr. W. Assim Falou Zaratustra; trad. Mário da Silva. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.

_________. Além do Bem e do Mal; trad. Márcio Pugliesi. - Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

_________. A Genealogia da Moral; trad. Joaquim J. de Faria. - São Paulo: Moraes, 1991.

_________. Ecce Homo; trad. Pietro Nassetti. - São Paulo: Martin Claret, 2004.

THOREAU, H. D. Desobedecendo; trad. José A. Drummont. - São Paulo: Rocco, 1986.

_______. Walden; trad. Astrid Cabral. - São Paulo: Aquariana, 2001.