DISCURSUSCurso de História da Filosofia Moderna
Immanuel Kant
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Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA

Segunda Unidade - SÉCULO XVIII:

  • Leitura de "O que é 'Esclarecimento'";
Por Antônio Rogério da Silva

A carreira filosófica de Kant foi marcada não só pela estrutura arquitetônica de sua crítica, mas também por vários opúsculos publicados. Sua obra da primeira fase é toda composta por ensaios, cujos temas tratavam desde a cosmologia até a metafísica. No entanto, manteve-se afastado nessa época dos assuntos relacionados à história, política e moral, embora tivesse publicado textos que continham traços de idéias que foram desenvolvidos mais tarde em obras específicas, como as questões estéticas e antropológicas contidas em Observações acerca do Sentimento do Belo e do Sublime, de 1764.

Depois de 1781, Kant continuou escrevendo seus opúsculos, enquanto erguia sua "filosófica catedral barroca". Dessa vez, entretanto, ao lado da metafísica, aparecem assuntos religiosos, éticos, sociais, pedagógicos e tudo o mais que estivesse voltado ao entendimento da questão fundamental de sua linha de pesquisa: "o que é o homem?". Do ponto de vista político, a principal contribuição de Kant encontra-se na coleção de opúsculos reunidos em torno da "A Paz Perpétua", escrito entre 1795 e 1796. As teses kantianas que mais interessam aos estudiosos do direito devem ser buscadas em primeiro lugar no livro Metafísica dos Costumes (1785). Porém o texto de Kant que lhe causou mais problemas com a censura foi A Religião dentro dos Limites da Razão, de 1794, onde pretendeu enquadrar a doutrina religião nos moldes de sua abordagem crítica do alcance racional para defesa de seus princípios.

Na primeira Crítica, Kant havia mostrado, como já fizera em um opúsculo de 1763, "O Único Fundamento Possível de uma Demonstração da Existência de Deus, que as defesas racionalistas de Leibniz, Espinosa, Descartes e mesmo de Santo Anselmo (1033-1109), em seu famoso argumento ontológico (1). Pela Razão pura, seria impossível estabelecer a realidade de tal existência, uma vez que ela estaria baseada apenas em juízos.

(...) Porém, a necessidade incondicionada dos juízos não é uma necessidade absoluta das coisas. Porque a necessidade absoluta do juízo só é uma necessidade condicionada da coisa ou do predicado do juízo. (...) Contudo, esta necessidade lógica demonstrou um tão grande poder de ilusão que, embora se tivesse formado o conceito a priori de uma coisa, de tal maneira que na opinião corrente a existência esteja incluída na sua compreensão, julgou-se poder concluir seguramente que, convindo a existência necessariamente ao objeto, desse conceito, isto é, sob a condição de pôr esta coisa como dada (como existente), também necessariamente se põe a sua existência (pela regra da identidade), e que este ser é, portanto, ele próprio, absolutamente necessário, porque a sua existência é pensada conjuntamente num conceito arbitrariamente admitido e sob a condição de que eu ponha o seu objeto.
(...) Exteriormente, nada há com que possa haver contradição, porque a coisa não deverá ser exteriormente necessária; interiormente, nada há também, porque suprimindo a própria coisa, suprimistes, ao mesmo tempo, tudo o que é interior. Deus é Todo-poderoso, eis um juízo necessário. A omnipotência não pode ser anulada, se puserdes uma divindade, ou seja, um ser infinito a cujo conceito aquele predicado é idêntico. Porém, se disserdes que Deus não é, então nem a omnipotência nem qualquer dos seus predicados são dados; porque todos foram suprimidos juntamente com o sujeito e não há neste pensamento a menor contradição (KANT, I. Crítica da Razão Pura, A594-595 e B622-23, pp. 501-502).

Testamento de KantCom isso, a razão puramente teórica estava impossibilitada de fornecer uma prova definitiva sobre a existência de Deus. Para que esta fosse sustentada, a teologia dependeria de uma fundamentação precisa dos juízos morais, a fim de que uma conduta boa pudesse aspirar à felicidade em uma vida além túmulo, respondendo à questão "o que podemos esperar?". Todo o raciocíonio religioso, portanto, decorreria de uma Razão prática, moral, e a salvação deveria ser consequência de uma vida virtuosa e não o contrário. Todas as teorias teológicas especulativas que não estivessem voltadas para os costumes deveriam ser reduzidas a um conhecimento a posteriori de Deus. Tais opiniões provocaram como era de se imaginar a ira de religiosos alemães que sob o reinado de Frederico Guilherme II (de 1786 a 1797) fizeram proibir qualquer ensinamento que se desviasse da linha ortodoxa luterana. Kant que já avançava os 69 anos foi censurado e acatou a proibição de manifestar sua opinião religiosa, pelo menos, enquanto durasse o governo desse déspota prussiano.

Kant nutria esperanças que depois do afastamento de Frederico Guilherme II, cuja morte o levou três anos depois do decreto do censor, trouxesse de volta o espírito iluminista que reinava durante o governo de Frederico, o Grande (de 1740 a 1786). Período cuja política de livre expressão do pensamento fora registrado no ensaio "O Que é Esclarecimento?", de 1783. Kant era um síncero divulgador dos ideais iluminista, acreditava no progresso cultural da humanidade e com um tempo em que os seres humanos atingissem plenamente sua maioridade. O projeto iluminista e de uma razão voltada para evolução da espécie humana foi colocado de forma clara neste texto que é um dos de estilo mais direto da obra kantiana, toda ela marcada por um pensamento difícil de acompanhar.

Ousar Pensar

Os motivos que levaram Kant a escrever "O Que é Esclarecimento?" estão relacionados à mesma questão proposta pelo jovem teólogo Johann Friedrich Zöllner (1753-1804) que se manifestou com irritação contra uma proposta anônima, que surgiu em meados de 1783, para abolição do casamento religioso. Kant levou a sério o questionamento desse pastor, lançado na revista Berlinische Monatsschrift, de setembro de 1783, e preparou a sua resposta que foi publicada no mesmo periódico em dezembro de 1784. E, logo no início, Kant abre com um primeiro parágrafo que faria juz a qualquer manifesto do movimento, caso o iluminismo tivesse necessitado de uma formulação tão precisa quanto esta:

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servi-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! [Ousar saber] Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (KANT, I. "Resposta à Pergunta: Que é 'Esclarecimento'", p. 100).

A imagem que Kant tinha de seus contemporâneos era de homens, em sua maioria, e mulheres, na totalidade, presos a posturas de eternos discípulos de seus mentores, e que deixariam ao encargo de especialistas contratados, as tomadas de decisão que lhes eram exigidas (2). Seja por preguiça ou pelo temor inculcado pelos próprios educadores, a maior parte da humanidade considerava e, talvez ainda considere, difícil pensar por si mesma, a fim de encontrar a passagem para a maioridade. Viver sobre a tutela de outras pessoas tornou-se quase como uma segunda natureza da qual muitos temem se afastar. Sempre que uma posição lhes é cobrada, preferem se manifestar por meio de fórmulas pré-estabelecidas e preconceitos que os mantêm em condição inferior, como correntes que os impedem de caminhar firmemente (3).

Contudo, uma vez dada liberdade ao público, Kant imaginava que seria inevitável a busca pelo esclarecimento. Todavia, isto não poderia vir de acontecer por completo imediatamente, já que é frequente exigirem os alunos dos próprios educadores, que tentam se afastar dos preconceitos que difundiram antes, a permanência na obscuridade a qual o público se fixou por apego à tradição.

(...) Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento (KANT, I. Op. cit., p. 104).

Longe de Paris, cinco anos antes de deflagrar a Revolução Francesa, Kant antevia os problemas que iriam enfrentar os revolucionários das luzes, na mudança radical da sociedade que propunham. Pelo hábito profundo de estar atrelado a preconceitos, é que seria necessário que a massa fosse instruída gradativamente. De todo modo, para que o esclarecimento se desenvolvesse seria necessário principalmente a condição de plena liberdade, sendo o uso público da razão o aspecto mais brando desta liberalização.

Na época de Kant, estava generalizada a prática da censura à expressão individual, por parte das autoridades. O que impedia considerá-la uma era esclarecida. Só o uso público da razão livre poderia realizar o esclarecimento. Por uso público, entenda-se a manifestação de pessoas sábias perante um mundo de letrados. Ao passo que no uso privado, a tais pessoas é imposto a obediência em primeiro lugar, assim como quando estão a exercer as funções burocráticas de Estado, no serviço militar, no pagamento e cobrança de impostos ou no exercício do sacerdócio, onde a constante discussão sobre a validade de cada ordem inviabiliza a atividade específica de comando e controle. Nessas circunstâncias, aquele que considerasse o exercício de suas funções incompatível com suas convicções pessoais deveria se afastar do cargo, pois tais profissões não permitem ao indivíduo agir conforme suas crenças pessoais, por melhor fundamentadas que elas estejam (4). Apenas quando se dirige a um público mais amplo, ou toda humanidade, as opiniões do autor devem se expressar através de um uso público da razão, expondo suas idéias em seu próprio nome.

Por outro lado, do ponto de vista legal, qualquer forma de contrato que vise impedir o futuro esclarecimento do povo deve ser considerado nulo e sem validade, mesmo entre classes religiosas mais ortodoxas. Nesse sentido, para o aperfeiçoamento da espécie, toda constituição e mesmo normas religiosas precisam ser submetidas a uma discussão prévia e são passíveis de posteriores modificações por cada um que exerça suas faculdades racionais. Assim, um monarca tem suas ações restritas à vontade do povo, que deve ser a sua também, sem deixar de se valer do poder para evitar a violência entre os súditos, ou o estabelecimento do despotismo espiritual pela censura (5).

Embora julgasse que ainda não vivia em uma era de esclarecimento, Kant acreditava que uma abertura nesta direção havia sido feita, permintindo que se vislumbrasse a possibilidade de superação dos obstáculos à saída da menoridade. Frederico, o Grande (de 1740 a 1786), entre tantos déspotas, era um monarca digno de ser considerado, na interpretação de Kant, com esclarecido. Pois, permitia a livre manifestação sobre questões religiosas e também morais (6).

Os assuntos religiosos merecem destaque, porque, diferente das ciências e das artes, sofriam a tutela de governantes ou sacerdotes. Um governante esclarecido que tenha o controle das forças armadas "para garantir a tranquilidade pública" (7) é capaz de permitir a todos seus súditos o livre pensamento, sob a condição de restrita obediência às leis. Por conta disso, a tendência para a liberdade de pensar espalha na população o desejo de participar mais voluntariamente das tarefas que lhe são devidas, alterando até os princípios de governo. Deste modo, a imagem que se tem da humanidade se torna mais digna de seu nome, além da simples concepção de homens máquinas.

O Que é 'Esclarecimento' inclui-se, geralmente, nos opúsculos kantianos destinados às discussões de temas históricos. Ao lado de outros escritos políticos e pedagógicos, ajuda a preparar a mente do leitor para a mudança que viria inevitavelmente, a partir de 1789. É em opúsculos como este que a arquitetônica da Crítica kantiana, assume seus contornos mais humanos, pronta para responder as questões de aplicação da teoria, no cotidiano, que nem sempre cabem em uma obra maior.

Notas

1. Esse argumento pretende provar a priori a existência de Deus identificando-o como algo "maior do que a qual nada se pode pensar" (ANSELMO, Sto. Proslógion, cap. XV, p. 97), que deve existir em pensamento e na realidade, caso contrário não se compreende ao certo o que se quer dizer com a maior coisa que pode ser concebida.
2. Os principais textos da radical inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797), primeira filósofa do feminismo, ainda não haviam sido publicados, tais como: Thoughts on the Education of Daughters, de 1787; The Female Reader, de 1789; e A Vindication of the Right of Women, 1792.
3. Veja KANT, I. "Resposta à Pergunta: O Que é 'Esclarecimento'?", p. 102.
4. Veja KANT, I. Op. cit., pp. 104-108.
5. Veja KANT, I. Idem, pp. 108-112.
6. Veja KANT, I. Ibidem, p. 112.
7. KANT, I. Ibidem, p. 114.

Bibliografia

ANSELMO, Sto. "Proslógion", in Opúsculos Selectos da Filosofia Medieval; trad. António S. Pinheiro. - Braga: Faculdade de Filosofia, 1984.

BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia; trad. Desidério Murcho et al.. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

DURANT, W. A História da Filosofia; trad. Luiz C. do N. Silva. - São Paulo: Nova Cultural, 1996.

KANT, I. Textos Pré-Críticos; trad. José Andrade e Alberto Reis. - Porto: Rés, 1983.

____. La Religion dentro de los Limites de la Mera Razon; trad. Felipe M. Marzoa. - Madrid: Alianza, 1986.

____. Crítica da Razão Pura; trad. Alexandre F. Morujão e Manuela P. dos Santos. - Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.

____. Critique de la Faculté de Juger; trad. Alexandre J.-L. Delamarre et al. - La Flèche: Gallimard, 1985.

____. Lógica; trad. Guido A. de Almeida. - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

____. "Resposta à Pergunta: Que é 'Esclarecimento'?", in Textos Seletos; trad. Floriano de S. Fernandes. - Petrópolis: Vozes, 1974.