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TEORIA DOS JOGOS E DA COOPERAÇÃO (MAY, E. 'Ben Franklin leva Xeque-Mate de Lady Howe', sec.XIX)
Bens Públicos
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TEORIA DOS JOGOS E DA COOPERAÇÃO PARA FILÓSOFOS

SEÇÃO II

» 2ª Unidade: Bens Públicos

  • O Carona Free-rider.
Por Antônio Rogério da Silva

O problema do carona (free-rider) foi objeto de discussão filosófica sob vários ângulos. Já na República - livro II -, Platão esboçou na fala de seu irmão Gláucon a descrição do comportamento de pessoas justas ou injustas submetidas a uma convenção que é forçada a respeitar. Ficou famosa a história fabulosa do anel de Giges, um pastor que achara um anel mágico capaz de tornar invisível quem o usasse voltado para palma da mão, recuperando a visibilidade depois de ser girado novamente para o lado externo. Uma vez de posse do poder da invisibilidade, alguém tomado pela ambição procuraria tirar vantagens cometendo toda espécie de injustiça, apoderando-se dos bens alheios, sem se preocupar em ser apanhado. Tal ação pareceria a mais racional possível para quem tivesse usando o anel, pois atenderia sem maiores objeções aos anseios de suas paixões pelos bens materiais livre dos obstáculos das leis e a chance de ser capturado (1).

As ações de um egoísta consequente tratadas de modo pioneiro por Platão foram retomados pelo contratualismo moderno de Thomas Hobbes, em Leviatã. Hobbes reapresentou e defendeu uma concepção de justiça apoiada nas leis e convenções formadas por um contrato, que teria na fundação do Estado civil, a maneira mais adequada de se tornar viável. O personagem Giges ressurge no capítulo XV do Leviatã como o tolo que pensa na justiça como algo artificial e inexistente em seu íntimo. Negando a validade dos pactos, os tolos consideram defensável, sempre que puderem não cumprir os acordos, sobretudo, toda vez que isso trouxer maiores benefícios para o transgressor (2).

Também David Hume viu as consequências de uma ausência de resposta formal para quem não possua nenhum sentimento moral - vergonha ou orgulho, por exemplo - capaz de motivá-los a agir em favor da virtude. Hume sugere haver uma espécie de auto-contradição daquele que chama de patife esperto, mas não tem, senão apelado para uma fraqueza de vontade, como explicar e, por conseguinte, refutar atitudes egoístas a não ser defendendo a nobreza e o prazer de agir conforme a reputação de um homem honesto.

Tal pessoa tem, além disso, a frequente satisfação de contemplar os patifes que apesar de toda sua astúcia e habilidade, são traídos por suas próprias máximas e que, ainda que em seu propósito seja roubar de uma forma secreta e controlada, se surgir uma oportunidade tentadora, a natureza é fragil e caem na armadilha, de onde nunca conseguem sair sem a perda total de sua reputação e de toda futura confiança e fé por parte da humanidade (HUME, D. Investigação sobre os Princípios da Moral, seç. IX, part. II, pp. 156-157).

Além dos filósofos mais importantes, a tentação de desertar vem sendo alvo de pesquisas nas áreas de conhecimento interessadas na investigação do comportamento humano. Aquilo que parecia atingir apenas conceituais de uma determinada corrente filosófica, a contratualista, revelou-se como um problema geral da conduta humana, ora descrito como a tragédia dos comuns, pelo biólogo Garrett Hardin (1915 - 2003), ou altruímo recíproco, pelo evolucionista Robert Trivers, dilema social, pelo economista Howard Raiffa, entre vários autores e cientistas contemporâneos. Os jogos dos Bens Públicos talvez estejam a revelar os elementos definitórios comuns a todas as sociedades, desde a pré-história até a civilização global (3).

Enquanto o dilema dos prisioneiros procurava explicar como a cooperação pode emergir entre agentes egoístas que têm na deserção sua estratégia dominante, os bens públicos tentam mostrar como as sociedades podem se manter unidas, mesmo sabendo-se que os desertores, individualmente obtêm os melhores resultados da cooperação dos outros. No dilema dos prisioneiros, a retaliação e o comportamento recíproco funcionam graças à proximidade e o contato direto entre os dois agentes. Para promover os Bens Públicos, entretanto, essa solução torna-se problemática, pois o número maior de participantes dificulta a punição imediata. Todavia, esta punição só é eficaz se além de atingir com firmeza o desertor, seja também custosa aos cooperadores. Assim, para punir a deserção com multa, toda a cooperação deve sentir seus efeitos de um modo geral, fazendo com que todos esperem que tais ações não ocorram novamente. A punição eficaz depende portanto da identificação correta do jogador de quem se cobrará a multa.

Um participante dos Bens Públicos sempre pode considerar que o montante aplicado pelos outros é suficiente para aquisição desse bem e se satisfazer com a parte que usufruirá deste sem nada mais contribuir em troca. Nesse caso, ser o último a jogar torna-se vantajoso para quem preferir não fazer contribuição alguma quando os outros já supriram com o necessário e não podem mais voltar atrás em suas dotações. Por outro lado, aqueles que foram capazes de antecipar tal movimento preferirão esperar que os outros contribuam em seu lugar, deixando para o último jogador o encargo pelo financiamento do bem comum. Jogado sequencialmente, os bens públicos transformam-se em ultimato no qual o último jogador pode decidir ou não se pega carona ou recusa o fornecimento de tal produto ou serviço para todos.

Em alguns experimentos feitos sob o modelo dos Bens Públicos, constatou-se o efeito pedagógico da aplicação de multas a desertores que tenham um custo para os cooperadores, ainda que pequeno. Os mesquinhos foram ensinados a contribuir para o benefício de todos. Agir contra os próprios interesses, passou então a promover maiores ganhos a longo prazo. Porém, quando os grupos que aplicaram multas foram desfeitos e seus participantes transferidos para novos grupos formados por desconhecidos, onde tal regra ainda não havia sido instituída, os investimentos começaram altos e quando a multa se fez necessária, os "caronas" foram punidos rigorosamente. Isso implica que além do aspecto educacional da primeira experiência, o empenho de punir os transgressores produziu uma satisfação adicional proporcionada pela vingança, um prazer primitivo frente aos traidores submetidos.

A vingança surge então como um sentimento moldado pela evolução que permite aos vingativos não se deixar explorar por aproveitadores em momentos difíceis como guerra, fome ou peste. A punição põe os infratores em uma disciplina rígida nessas ocasiões, onde a sobrevivência do grupo está ameaçado e a possibilidade de interação no futuro são escassas. O prazer da vingança sentida pelos indivíduos que não têm a consciência da implementação desse mecanismo evolutivo e a forma com que a espécie foi estimulada a aplicar a punição contra seus próprios interesses imediatos (4).

Sentimentos morais, como generosidade, amizade, vergonha, culpa, podem ser explicados por meio de raciocínios semelhantes aos que levam à vingança nos jogos de Bens Públicos. Portanto, teriam sido adquiridos ao longo da seleção natural, por proporcionarem um desempenho melhor na intricada rede de relacionamento social. Na prática, a existência de caronas, em meio a cooperadores também pode ser explicada, paradoxalmente, pelo êxito da cooperação. Poucos mutantes desertores teriam um melhor desempenho entre cooperadores do que entre semelhantes desertores, como mostra o exemplo dos jogos entre Pombos e Falcões.

A Solução Filosófica para o Carona

Cada um dos três filósofos citados antes apresentou uma solução para o problema dos caronas. A resposta de Hume aproxima-se da concepção evolutiva na qual a cooperação prevalece na sociedade por meio de um crescimento lento consolidado pelo hábito da obediência ou pela educação. Ademais, o sucesso momentâneo do patife esperto não compensaria a perda completa de sua reputação com os prejuízos decorrentes da falta de confiança que o outro lhe tinha. Logo, ao final das contas, na visão de Hume, o comportamento do carona seria considerado auto-contraditório e, portanto, irracional. Embora o próprio Hume considerasse insatisfatório esse tipo de resposta ao agente egoísta, o apelo à racionalidade era sua última cartada contra quem não tivesse qualquer sentimento de culpa por seus atos imorais (5).

O largo argumento tecido por Platão, na República, aponta para a necessidade de se encontrar uma concepção imanente de justiça apoiada pela fundação de uma sociedade em que cada um exerceria suas funções de acordo com suas aptidões na espera de receber suas recompensas segundo seu desempenho justo. Sem ter como avaliar as chances de um argumento metafísico, como o platônico, funcionar em condições concretas, a proposta de Platão joga efetivamente a solução de problema do carona para um outro patamar idealista impossível de ser implementado na prática (6).

Entrementes, é certo que a solução platônica não se alinha sinceramente à versão contratualista esboçada por seu irmão Gláucon. O contratualismo moderno foi fundado por Hobbes que via na posição do carona a postura de um tolo que faz um falso raciocínio de suas ações nada razoáveis contra o cumprimento do contrato. Hobbes considerava, com todas as letras, o comportamento do carona contrário à razão apoiado no seguinte argumento:

(...) Em primeiro lugar, quando alguém pratica uma ação que, na medida em que é possível prever e calcular, tendo para sua própria destruição, mesmo que algum acidente inesperado venha a torná-la benéfica para ele, tais acontecimentos não a transformam numa ação razoável ou judiciosa. Em segundo lugar, numa condição de guerra, em que cada homem é inimigo de cada homem, por falta de um poder comum que os mantenha a todos em respeito, ninguém pode esperar ser capaz de defender-se, da destruição só com sua própria força ou inteligência, sem o auxílio de aliados, em alianças das quais cada um espera a mesma defesa. Portanto, quem declarar que considera razoável enganar aos que não pode razoavelmente esperar outros meios de salvação senão os que dependem de seu próprio poder. (...) Portanto, alguém que seja deixado fora ou expulso de uma sociedade está condenado a perecer, e se viver nessa sociedade será graças aos erros dos outros homens, os quais ele não podia prever e com os quais não podia contar, portanto contra a razão de sua preservação (HOBBES, Th. Leviatã, part. I, cap. XV, pp. 87-88).

O argumento de Hobbes é claro em atacar a irracionalidade do tolo, ou carona, em não cumprir os pactos acertados. Hobbes pressupõe, todavia, que os agentes sejam capazes de retaliar ou punir sua deserção sistemática, sem recorrer a sentimentos morais para isso. Mas o que os jogos de Bens Públicos mostram é que, na ausência de tais mecanismos de controle, a escolha racional de maximizar sua utilidade recai sobre a deserção. Esta é a estratégia dominante no Dilema dos Prisioneiros e no Dilema Social, recomendada pelos teóricos economistas, apesar de gerar um equilíbrio sub-ótimo a todos envolvidos. Não há, portanto, que refutar o comportamento do tolo como irracional, se não houver nenhum instrumento de punição aos desertores.

Hobbes, como todos os filósofos da tradição moderna e anterior, não conhecia a teoria dos jogos, embora trabalhasse os problemas comuns de modo intuitivo. Na situação do estado de natureza, o comportamento egoísta de quem puder explorar a cooperação do outro é racional, quando o dilema dos prisioneiros é jogado apenas uma vez e os reencontros futuros são raros. Não obstante, a solução hobbesiana imaginada para oferecer uma resposta aos desertores é correta: retaliar e punir. O que no caso dos Bens Públicos exige também a fundação de um Estado que identificasse os desertores e aplicasse as penalidades cabíveis. Hobbes tem razão em considerar o estado de natureza - o mundo dos desertores - um ambiente onde a vida dos indivíduos "é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta" (7). Tem razão também em recomendar a cooperação, desde que haja garantias institucionais. Mas peca em considerar irracionais as ações egoístas, nas condições já postas.

Filósofos contemporâneos - entre eles, Simon Blackburn de Ruling Passions e Ernst Tugendhat de Lições sobre Ética - criticam o contratualismo hobbesiano como base em uma visão próxima a Hume e Kant. Isso significa adotar uma postura a favor da formação de sentimentos morais e uma deliberação universal pela validade das ações morais. A falha dessa linha de raciocínio esta na ausência de uma explicação do modo como tais sentimentos e métodos de avaliação podem ser constituídos evolutivamente, sem o concurso de técnicas de retaliação e tolerância ao longo da evolução. O prazer de sentimentos nobres só pode emergir depois que programas eficazes em identificar desertores e cooperadores foram incorporados por gerações daqueles que sobreviveram ao primeiro enfrentamento com os trapaceiros e puderam se reproduzir em maior número.

O consenso, considerado válido por todos os agentes, só se sustenta, sem a necessidade de intervenção estatal, na medida em que a consideração dos interesses dos envolvidos se revelou capaz de, através de sucessivas iterações prévias que restringiram as deserções imotivadas, evitar as consequentes perdas de uma retaliação subsequente. Tais acordos universais sobre normas válidas surgem, portanto, depois que um altruísmo recíproco foi consolidado e não na forma de um incondicional compromisso pela cooperação, como exigia o imperativo categórico.

A extensão do Dilema dos Prisoneiros ao Dilema Social, representado pelos modelos de jogos de Bens Públicos, obrigam que haja uma revisão da carga da argumentação filosófica tradicional que ainda se reproduz entre os filósofos contemporâneos. Análises implementadas pelos teóricos dos jogos sobre os diversos pontos que influenciam a tomada de decisão em interações com um ou mais atores mostram que soluções simples precisam ser complementadas com novas abordagens que incorporam gradualmente os elementos que determinam uma escolha adequada, segundo uma abordagem mais complexa e próxima às condições concretas do dia-a-dia. O caminho que conduz ao detalhamento crescente dos modelos de simulações só pôde ser trilhado depois que jogos mais simples foram estudados antes. Nesse sentido, a filosofia atual tem nos modelos oferecidos pela Teoria dos Jogos e da Cooperação as ferramentas mais precisas elaboradas até o momento para testar suas hipóteses e resolver aporias que se perpetuam ao longo dos séculos.

O problema do carona não encontra solução definitiva em nenhuma corrente filosófica tradicional. Para tratar esse problema é preciso levar em conta os aspectos conceituais e os princípios que sustentam. Os jogos dos Bens Públicos e proporcionam o cenário virtual adequado para que essas teorias sejam trabalhadas, a fim de que respostas plausíveis sejam esboçadas em função de efetiva avaliação dos seus resultados em contextos, senão reais, ao menos verossímeis.

Notas
1. Veja PLATÃO, A República, liv. II, 359d - 360d.
2. Veja HOBBES, Th. Leviatã, part. I, cap. XV, pp. 86 - 87.
3. Veja HAUERT, Chr. et al. "Volunteering as Red Queen Mechanism for Cooperation in Public Goods Games", p. 1.
4. Veja SIGMUND, K., FEHR, E. & NOWAK, M. A. "The Economics of Fair Play", p. 87.
5. Veja HUME, D. Investigações sobre os Princípios da Moral, seç. IX, part. II, p 156.
6. Veja PLATÃO, Op. cit., liv. II.
7. HOBBES, Th. Op. cit., part. i, cap. XIII, p. 76.

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Referências Bibliográficas

BLACKBURN, S. Ruling Passions. - Oxford: Claredon, 1998.

HARDIN, G. "The Tragedy of the Commons", in Science, vol 162. 13 de dezembro de 1968, pp. 1243-1248. Disponível na Internet via http://www.garretthardinsociety.org/articles_pdf/tragedy_of_the_commons.pdf

HAUERT, Chr. et al. "Volunteering as Red Queen Mechanism for Cooperation in Public Goods Games". Disponível na Internet via http://www.iiasa.ac.at. Arquivo consultado em 2003.

HOBBES, Th. Leviatã; trad. de João P. Monteiro. - São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)

HUME, D. Investigación sobre los Principios de la Moral; trad. Gerardo López Sastre. - Madrid: Espasa-Calpe, 1991.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes; trad. Paulo Quintela. - São Paulo: Abril Cultural, 1980.

NOWAK, M.A., FEHR, E., SIGMUND, K. "The Economics of Fair Play", in Scientific American, jan. 2002.

PLATÃO. A República; trad. Mª Helena da R. Pereira. - Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.

RAIFFA, H. El Arte y la Ciencia de la Negociación; trad. Guillermo Cárdenas. - México, D.F: Fondo de Cultura Económica, 1982.

TUGENDHAT, E. Lições sobre Ética; trad. Róbson R. dos Reis et al. – Petrópolis: Vozes, 1996.